sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Sebastianismo 4

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« (…) Seguindo a lição de Fernando Pessoa, que considera o mito sebastianista a mais original e singular característica da cultura portuguesa, decorrente da identidade histórica de Portugal alcançada com os Descobrimentos, consideramos que o mito sebastianista se encontra na origem sociológica e mental dos quatro complexos culturais que, cruzados, constituem a representação mental geral dos portugueses que historicamente o tem definido como povo: o complexo viriatino (de Viriato: povo humilde mas ousado), o complexo vieirino (de António Vieira: povo que supera as próprias forças e dimensão territorial, atingindo níveis históricos grandiloquentes), o complexo pombalino (do Marquês de Pombal: povo que imita acriticamente tudo o que no estrangeiro é nomeado com sucesso, considerando o que provém do exterior superior ao que é nacional), e o complexo canibalista (um povo embrutecido e fanatizado, mesquinho, invejoso e bárbaro que, desde a segunda metade do séc. XVI, com alguns intervalos de liberdade, vive na ânsia de agradar a chefes e a instituições (…).»
No meio da neblina opaca que dilui toda a clareza deste discurso expositivo, tropeça-se nalgumas ideias:
O mito sebastianista é uma característica da cultura portuguesa. Isto é, é uma criação mental assumida colectivamente. Ora isto não passa duma trapaça. O que é verdade é que o mito sebastianista é uma criação fantástica, alimentada inicialmente por elites, e prosseguida por uma seita de pensadores visionários, os quais de bom grado trocam realidades por ficções. Na história de Portugal abundam situações de catástrofe colectiva, resultantes de opções de elites dirigentes venais, traidoras e anti-patrióticas. Ora quando uma catástrofe atinge as dimensões dum Alcácer-Quibir, a reacção natural do instinto colectivo é não aceitar a realidade da história, é crer que ela não aconteceu, é acreditar que o rei há-de voltar no nevoeiro.
Historicamente, esta atitude não pode ser imputada aos portugueses. Antes sim, ela foi cultivada por elites, foi alimentada por poderosos que apenas tinham ficções para abastecer a escudela vazia do povo. Para isso lançaram mão de Bandarras, de trovas, de Encobertos, de profetas. Para melhor alienarem o rebanho. Esse procurou formas de sobreviver à penúria e ao desespero, era o que lhe competia. E sustentar que ele é culturalmente sebastianista é uma dupla canalhice, desta vez dos intelectuais que alijam a função social que lhes compete. Em lugar de lhe iluminarem rotas, empurram o vulgo para a escuridão.
As passadas décadas de sessenta e setenta podem muito bem ser vistas como o segundo Alcácer-Quibir do fim do império. E a história mostra que o povo não desistiu nem cruzou os braços. Fugiu a salto aos milhões, viveu penúrias indescritíveis, reuniu as parcas forças e acabou com um regime apodrecido. Mas não ficou à espera de que as elites dementes lhe trouxessem a salvação.
Entretanto, pensadores de bitola estreita escrevem isto:
« (…) O mito sebastianista tem sido pouco estudado, e não raro desprezado pela elite cultural portuguesa, permanecendo para esta válida a consigna de Agostinho de Macedo, registada há cerca de 200 anos, de que o sebastianismo nos envergonha como povo civilizado da Europa. (…)
É forçoso que os cientistas sociais se abram sem preconceito às perspectivas míticas e ocultistas, considerando que os mitos existem e valem por si, no quadro categorial do imaginário popular (…). É forçoso considerar o mito sebastianista um activo cultural, um existente histórico, gerado pela consciência popular, (…) que a ciência social (racionalista e positivista) jogaria para o sótão das velharias sem préstimo nem valor, posição que tem sido a dos sociólogos e historiadores do final do séc. XX.
Do mesmo modo é forçoso que os pensadores não desvalorizem as ciências sociais (…) como o fez António Quadros, considerando o “positivismo” um valor hermenêutico excessivamente limitado, e portanto falso nos seus fundamentos.»
Quer dizer, uma no cravo e outra na ferradura é a ciência desta gente!
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