sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Até que a voz me doa

Cá em casa roem-se quotidianamente as dores dum cepticismo de casca um tanto rugosa. Mas uns lares generosos livram-nos das tentações do cinismo correntio, que é tão diletante como inútil. Quer dizer que, em se podendo, ninguém por aqui hesita em meter as mãos na massa.
Por vezes chegam-me aos ouvidos ecos de fóruns nos media, onde acabam a desaguar torrentes de desespero. O que eu tenho a dizer a tal propósito é que não existe causa que não traga o seu efeito. E este efeito, que tem a sua causa, consiste em terem os portugueses que beber o vinagre até ao fim. Na sua história já longa, não é esta a vez primeira. Nós é que já o esquecemos.
Portugal teve governos do PS, antes de ser governado pela assombração que aí anda. E tais governos cometeram erros vários, lembremos só a barragem do Côa que não chegou a sê-lo e devia tê-lo sido, e a barragem do Tua que vai sê-lo e é um crime.
O último governo do PS foi o de Sócrates. O qual particularmente se empenhou em afrontar os problemas e fragilidades fatais de que Portugal padece, há muitos anos. A vida de todos nós depende disso. Mas desde cedo se foi acrescentando que fez tudo isso à bruta, à descarada, com demoníaca sobranceria, que era um venal, um corrupto, um temerário, e punha em risco evidente a nossa democracia, essa coitada. Olhemos nós para o marquês de Pombal, um notável governante no século que lhe coube. Nem sequer nos questionamos sobre o que poderia ele ter feito, sem trucidar à partida a arrogância dos Távoras e dos duques de Aveiro, sem incendiar previamente a escuridão da noite jesuíta. Limitamo-nos a pensar que o marquês era uma sanguinária besta, ou ouvimos dizer isso e ficamos calados. Por cobardia pura, ou por ignorância crassa . Ora vejamos:
Na Saúde, Sócrates prosseguiu o SNS, saído das mãos do ministro Arnaut. Na Segurança Social, com Vieira da Silva, incrementou a protecção social, sem a qual metade dos portugueses caem de imediato na penúria mais crassa. Na Educação, com a ministra Lurdes Rodrigues, melhorou a escola pública, renovou instalações, criou oportunidades para adultos, introduziu línguas e tecnologias. E queria avaliar os professores, um quarto dos quais não mostra capacidades nem conhecimentos para ser profissional do ensino. Sei do que falo, fui dez anos professor, no público e no privado, à noite e durante o dia. Foi aí que entrou em cena o tribuno Nogueira, que desceu a avenida à frente de legiões de setôres, e retirou 300 mil votos e a maioria absoluta ao PS em 2009. Mas o comité central conquistou cinco pontos eleitorais, é do que vive. Na Ciência e na Investigação, com Mariano Gago, a universidade portuguesa atingiu reconhecidos patamares de excelência, com efeitos que ainda sobrevivem. Na Justiça afrontou interesses corporativos das eminências da beca, e suportou-lhes por isso o azedume da bílis. Na Economia abriu campos de acção, nas viaturas eléctricas, nas energias renováveis, nas indispensáveis infra-estruturas, nas novas tecnologias. Nas Finanças tinha recebido, em 2005, um défice de 7% e uma dívida de cerca de 90% do PIB. Em 2007 o défice estava em 2,9%. 
Em 2008 chegou da América a sarna do subprime, e a maior crise financeira dos últimos oitenta anos. Seguindo as instruções da União Europeia, esse ninho de elites traiçoeiras, Sócrates abriu os cordões à bolsa para responder à crise. Aumentou o investimento público e o défice voltou a subir. Em 2010, perante a queda da Grécia e da Irlanda, perante isso da austeridade e o acosso das agências de rating, Sócrates apresentou o PEC IV. O resto é bem conhecido. 
Diga-se então clarinho, para se perceber bem: Sócrates foi o melhor primeiro-ministro que Portugal conheceu, na era democrática. Por isso mesmo foi acossado implacavelmente, e ainda hoje é homiziado pela oligarquia rapace, pelos seus lacaios avençados, e pela estupidez atávica dos portugueses, cujo fadário é serem os cafres da Europa. Depois de soltarem os lobos, já desesperam muitos, no rebanho. Mas só podem contar consigo próprios.