quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Um Nobel não se come

Então promoveram-me a tenente, mandaram-me para Angola e marcaram-me lugar num DC 6. Era o melhor que havia. Dos aviões que me esperavam no Congo não conhecia nenhum. Mas chegara o tempo de aprender.
A partida seria ao fim da tarde e era Maio. Mas adiaram o voo, por um problema qualquer. Eu improvisei uma pensão, não disse nada a ninguém. E fiquei com o dia livre, marcada que estava nova tentativa para a noite seguinte. Passei a tarde na feira do livro, avenida abaixo comprei a Terra de Neve, do japonês Kawabata, e avenida acima as Lendas da Guatemala, do Miguel Ángel Astúrias. Um já tinha o prémio Nobel, o outro estava para o ter. Não poderei afirmar que fui para a guerra mal acompanhado.
O velho quadrimotor descolou à meia-noite, fez tremer o Areeiro, e lá foi pelo mar abaixo, seguindo a rota duns marinheiros antigos. Eu adormeci logo que pude, quando acordei passara o Bojador. Mas um Nobel não se come, e eu sentia a fome dos antigos marinheiros, que também não pensaram no farnel. Quem me valeu ali foi a Mitina, mulher dum companheiro de aventuras, alminha previdente e caridosa que trazia numa bolsa um salame de cacau. Ao romper da manhã aterrávamos no Sal, e constou que havia a bordo uma avaria. Claudicara uma peça qualquer num dos motores, que a TAP nos havia de trazer.
As instalações da Força Aérea eram exíguas, para aquela tropa toda. É certo que lá ao fundo, disfarçado numa duna, havia um hotel de madeira. Mas era espaço restrito das tripulações civis que faziam escala nos Espargos. E foi assim que o velho DC 6 se viu transformado em tenda de campanha.
Na cauda ficava a zona de marinheiros e magalas. À frente havia mulheres, e cavalheiros respeitáveis, e crianças, e bebés. Só um restrito grupo de privilegiados encontrou lugar nuns catres disponíveis, que havia na enfermaria. Foi o meu caso, durante dois dias. E quando se levantou aquele acampamento, o avião cheirava a fraldas, a paparocas azedas e a caravelas antigas.
Aterrámos em Bissau a meio duma tarde que era um forno. Fizemos ali aguada, e foi então que me penetrou na alma o eflúvio das calmarias do golfo, que nunca mais me saiu. Anos depois voltaria a encontrá-lo, mas não nos antecipemos, por enquanto ainda é cedo.
Que já estamos em Luanda, e vão mandar-nos para o Norte, para manter os bacongos em respeito. Lá voaremos aviões que nunca vimos, em missões que nunca praticámos. Mas quem nos conhece a História, há-de saber que estamos sempre a tempo.
Não tarda muito partimos o focinho, e voltamos a Lisboa, ao hospital. Mas agora já num avião moderno, que vai num pé, e já regressa noutro.