quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Pai Natal

Diz-se que nascer é uma benesse. E assim será. Mas a bênção verdadeira consiste em ser infante no seio dum casalinho português da middle-class. É uma cornucópia de bem-aventuranças bem digna do Pai Natal.
A primeira decisão que os papás tomam, mal o infante se instala nas suas vidas, é deixarem de ser mulher e homem. Abdicam da condição, no bom propósito de se tornarem papás a tempo inteiro.
Há um tempo em que o infante se limita a deglutir, a dormir e a defecar. E os dois papás, enquanto seguem ansiosamente o gráfico dos pesos e medidas, vivem o seu período de exaltação.
Depois o infante começa a gatinhar, começa a gaguejar, ensaia os primeiros gestos de representação. É então que os dois papás, mais a família inteira, e também os amigos que vieram, lhe oferecem o papel de prima-donna e lhe cedem o palco inteiro. Organizam no salão uma roda em volta dele e cada um a seu modo o estimula. A mamã pede-lhe um gesto, a tia dá-lhe uma deixa, a avó bate-lhe palminhas à precocidade. E o infante faz o pino, puxa a orelha do gato, deita a linguita de fora, cospe na mão da madrinha. A distância entre o infante e um macaquito de circo reduz-se perigosamente. Mas ganha imenso a alegria do salão e a felicidade colectiva.
O infante já descobriu que está no centro dum mundo onde nada mais existe que o seu egoísmo cruel. E estabelece metodicamente a sua ditadura, em que vai introduzindo invencíveis tácticas de guerrilha. Não tem horas de dormir ou de comer, nem de chegar ou partir, nem de falar ou de ouvir.
O casalinho há muito que anda esfalfado, que não dorme, que não vive. Evita lugares públicos onde se exija alguma compostura, e há muito tempo que trabalha a meio gás. Mas assume esse calvário em função dum projecto de família, e mais que tudo em função do seu projecto de futuro.
Tendo assim sido menino, o infante faz-se criança, e torna-se adolescente, e há-de alcançar um dia a maturidade. Na escola descobriu o telemóvel, conheceu o mp3 dum companheiro, ouviu falar duma nova play-station. E só há boa cara para os papás se eles aceitarem o negócio. Caso contrário não abre a porta do quarto. Depois a cena repete-se por aquela marca de roupa, por um acessório gótico, por um camuflado da guerra do Afeganistão.
Um dia a criança quer ir à discoteca. E os papás, que já não têm vida própria, que têm que trabalhar, que deixaram de ter intimidade, que há muito se não entendem, que padecem de impotência irreversível, pagam a um segurança profissional que a venha buscar a casa, e a devolva às quatro da manhã.
Os papás já não são uma família. A criança agora só tem mamã, porque o papá foi-se embora. E um dia o adolescente, desinteressado da escola, vai à sua viagem de finalistas, porque no último período fez um esforço que afinal não resultou. A mãe arranja um segundo trabalho, porque um só não chega para as encomendas. Além dum carro para poder ir às aulas, ela tem que pagar as propinas numa privada, onde o infante se há-de licenciar um dia em Relações Internacionais.