terça-feira, 30 de agosto de 2016

António Guerreiro

Ipsilon: Consideracoes-de-um-impotente.
«Na perspectiva dos “analistas” ou “comentadores”, o final do discurso que Passos Coelho proferiu no Pontal é, pura e simplesmente, um arrazoado absurdo, apto a ser parodiado. Mas se o lermos como sintoma de um inconsciente político marcado por uma formação de sentido que se exprime na dicotomia potência/impotência, então esse discurso é cheio de significado. Tem a eloquência do sintoma, da fala sobredeterminada por uma força que o falante não controla. Dessa emergência descontrolada, a parte mais significativa é esta: “Podemos mais do que aquilo que é difícil”. Não é uma afirmação de poder mas de potência, que pode – ou não – passar ao acto. E assim Passos Coelho trouxe involuntariamente à luz, por antífrase, uma questão fundamental da política contemporânea: a questão da impotência. A impotência é o pressuposto que domina a política na sua forma actual de acção gestionária. É porque ela – a impotência política – está hoje no lugar de princípio e nunca tinha sido experimentada com tão elevado teor,  que quem chega precisa de começar por uma declaração de guerra: “Yes, we can”, proferiu Obama; “podemos mais do que aquilo que é difícil”, diz Passos Coelho. É tão importante o princípio da impotência que toda a alternativa passa obrigatoriamente pela conjugação do verbo “poder”, como está bem patente no movimento político espanhol Podemos. Após quatro anos de governação, sabemos hoje muito bem que o “podemos” do ex-primeiro-ministro significa a impotência imposta como estratégia de salvação. Tal impotência política, tornada um amor fati, uma adesão às coisas como elas são, como elas serão e como devem ser (chama-se a isto a “política das coisas”), tem ao seu serviço uma impotência teórica e ideológica (sob a forma do “não há alternativa”) e conduz toda a acção política em obediência a esse princípio, erigido como forma de governação. A impotência foi a grande arma do governo de Passos Coelho, um instrumento que ele utilizou com júbilo, evocando os constrangimentos económicos e financeiros como medida de uma experiência eufórica e redentora da impotência. Já a impotência da Esquerda socialista e social-democrata, em toda a Europa, é de outro tipo: habitada pela má consciência, desenvolveu manhas e argúcias para não deixar que o “podemos” pereça,  impotente e sem glória. Esta Esquerda gere o binómio poder/impotência por ciclos: dá ares de virilidade na oposição e verga-se ao princípio da impotência – embora fazendo os possíveis por não o admitir  –  quando está no poder. Este sentimento de impotência generalizado, vivido de maneira diferente consoante se trate da Esquerda ou da Direita, traz à ordem do dia um importante neologismo de Artaud: a palavra impoder. E se quisermos pesquisar na tradição literária as formas semânticas e conceptuais que iluminam o nossos tempo, talvez o “impolítico” Thomas Mann, o das Considerações publicadas em 1918, seja uma figura obrigatória. É certo que devemos desconfiar e ser muito prudentes no exercício que consiste em traçar analogias explicativas entre uma época passada e o presente. Mas a “revolução conservadora”, em cuja constelação se inscreveu Thomas Mann, na sua primeira fase de escritor, projecta-se com alguma verosimilhança num tempo que é o nosso. São do “impolítico” Thomas Mann estas palavras: “A antipolítica é também ela uma política, já que a política é uma força terrível: basta apenas saber que existe e já estamos dentro dela, perdemos para sempre a inocência”. Acrescentemos: a impotência política é também ela um poder terrível.Considerações dum impotente".
«Na perspectiva dos “analistas” ou “comentadores”, o final do discurso que Passos Coelho proferiu no Pontal é, pura e simplesmente, um arrazoado absurdo, apto a ser parodiado. Mas se o lermos como sintoma de um inconsciente político marcado por uma formação de sentido que se exprime na dicotomia potência/impotência, então esse discurso é cheio de significado. Tem a eloquência do sintoma, da fala sobredeterminada por uma força que o falante não controla. Dessa emergência descontrolada, a parte mais significativa é esta: “Podemos mais do que aquilo que é difícil”. Não é uma afirmação de poder mas de potência, que pode – ou não – passar ao acto. E assim Passos Coelho trouxe involuntariamente à luz, por antífrase, uma questão fundamental da política contemporânea: a questão da impotência. A impotência é o pressuposto que domina a política na sua forma actual de acção gestionária. É porque ela – a impotência política – está hoje no lugar de princípio e nunca tinha sido experimentada com tão elevado teor,  que quem chega precisa de começar por uma declaração de guerra: “Yes, we can”, proferiu Obama; “podemos mais do que aquilo que é difícil”, diz Passos Coelho. É tão importante o princípio da impotência que toda a alternativa passa obrigatoriamente pela conjugação do verbo “poder”, como está bem patente no movimento político espanhol Podemos. Após quatro anos de governação, sabemos hoje muito bem que o “podemos” do ex-primeiro-ministro significa a impotência imposta como estratégia de salvação. Tal impotência política, tornada um amor fati, uma adesão às coisas como elas são, como elas serão e como devem ser (chama-se a isto a “política das coisas”), tem ao seu serviço uma impotência teórica e ideológica (sob a forma do “não há alternativa”) e conduz toda a acção política em obediência a esse princípio, erigido como forma de governação. A impotência foi a grande arma do governo de Passos Coelho, um instrumento que ele utilizou com júbilo, evocando os constrangimentos económicos e financeiros como medida de uma experiência eufórica e redentora da impotência. Já a impotência da Esquerda socialista e social-democrata, em toda a Europa, é de outro tipo: habitada pela má consciência, desenvolveu manhas e argúcias para não deixar que o “podemos” pereça,  impotente e sem glória. Esta Esquerda gere o binómio poder/impotência por ciclos: dá ares de virilidade na oposição e verga-se ao princípio da impotência – embora fazendo os possíveis por não o admitir  –  quando está no poder. Este sentimento de impotência generalizado, vivido de maneira diferente consoante se trate da Esquerda ou da Direita, traz à ordem do dia um importante neologismo de Artaud: a palavra impoder. E se quisermos pesquisar na tradição literária as formas semânticas e conceptuais que iluminam o nossos tempo, talvez o “impolítico” Thomas Mann, o das Consideraçõespublicadas em 1918, seja uma figura obrigatória. É certo que devemos desconfiar e ser muito prudentes no exercício que consiste em traçar analogias explicativas entre uma época passada e o presente. Mas a “revolução conservadora”, em cuja constelação se inscreveu Thomas Mann, na sua primeira fase de escritor, projecta-se com alguma verosimilhança num tempo que é o nosso. São do “impolítico” Thomas Mann estas palavras: “A antipolítica é também ela uma política, já que a política é uma força terrível: basta apenas saber que existe e já estamos dentro dela, perdemos para sempre a inocência”. Acrescentemos: a impotência política é também ela um poder terrível.»