sábado, 2 de agosto de 2014

Vilegiaturas

[Ao meu amigo JJ, que me chama aviador e é doido por aviões]

Não garanto que fizessem parte do Pacto Ibérico, mas na prática era como se o fossem. Mal o Verão chegava, começavam as vilegiaturas de fim-de-semana em Espanha. Dum lado saíam parelhas de T6 a Málaga, por Jerez de la Frontera. Doutro eram os Fiat G91, por Cáceres até Madrid. Antes disso os F86 arriscavam até Palma. Porém desses não guardo testemunho.
O Roda era um gabiru que sabia mais que o melinas! Aturara os dinossauros dos T33, antes de começarem a apresentar fissuras que lhes interditavam manobras acrobáticas. Tratava por tu esses burros-do-mato dos F84. Mas o seu menino predilecto era o F86, e a coqueluche das turbinas do Fiat – já temos avião novo, quando aterra põe um ovo! Era o pára-quedas de travagem.
O Roda tinha horas aos milhares, ao pé dele eu nem chegava a ser um aprendiz. Um dia fui a asa dele até Madrid, e a neblinha era tal que nem sei como é que o Roda deu de caras com a pista. Os anfitriões levaram-nos à cidade num Seat 600 de serviço, e logo aí me deram a primeira lição.
A pensão era mais central do que as Portas del Sol, e ao outro dia fomos de visita ao Vale dos Caídos e ao Escorial. O cicerone, um ancião de bengala, contou-nos dos podrideros que havia nas catacumbas, esse lugar onde os duques de alba se reduziam a pó, antes de os arquivarem em sarcófagos. Aprendiam assim os duques de alba os caprichos da fortuna, e para mim já era a lição dois.
O pior foi no regresso. O Roda colocou-se à minha asa, e até à posição de espera tudo correu pelo melhor. Mas tudo se complicou quando a torre se pôs a debitar as instruções após a descolagem, num inglês de Ferrol... - Clai-man-mantein-flai-level-uánafaivaziro! E eu a soletrar-lhe – Sei-aguein! E o castelhano a dar-lhe – Claim-tausen-faive-andrade-fit! - e coisa e tal… E eu a pedir-lhe desculpa – Sei-aguein!
Em boa hora o Roda perdeu as estribeiras! Esporeou a Rolls-Royce, travou logo ali ao lado, levou o punho direito ao capacete e avançou para número um. Repetiu ao castelhano as instruções recebidas e eu descolei atrás dele.
Durante toda a subida, a cerração da neblina não fez senão aumentar. E quando finalmente nivelámos, cedo comecei a ficar atrasado. E pouco havia que eu pudesse fazer, porque caí no desespero duma vertigem. Tranquei-me no cockpit, aferrado aos instrumentos. E de vez em quando arriscava uma mirada ao Roda, que lá seguia à distância, numa aparente indiferença de mosquito.
A dada altura um controlador longínquo viu os ecos no radar, quis saber se ia ali uma parelha ou duas. E quando aterrei no destino, já o Roda estava em casa. Eu achei aquilo natural, pois que remédio, cada um é para o que nasce! Foi essa a lição terceira.