quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Morangos com açúcar

Em questões de aerodinâmica, a passarola era uma perfeição. Vasta asa alta com fendas, 270 cavalos acomodados num elegante nariz, um trem de gafanhoto reforçado nalguns casos, tudo junto permitia a operação em escassas dúzias de metros. Só por causa do princípio da rosa e do seu senão é que o bicho reservava, no solo, caprichos inocentes, e o motor, durante o voo, algumas extravagâncias. Mais que um cristão deu consigo plantado na picada, em sertões que não se recomendavam.
Eu levava pela trela dois novatos em preparação final. O império precisava deles, reclamava-os num berreiro, convir-lhes-ia saber o que tinham à espera, para lá do bojador. A pista da Comenda, ali ao Gavião, era o exemplo mais aproximado daquelas pistas do mato. E nós lá íamos, quotidianamente.
Deixado para trás o Rossio-ao-Sul-do-Tejo, fizemos um simulacro de aterragem forçada. O manual definia a configuração ideal para reproduzir as condições de voo com o motor parado. Depois era jogar com a altitude, escolher na paisagem um quintal disponível, e manobrar, planando, a passarola, por forma a que aterrasse lá dentro. No fim da aproximação, dava-se-lhe gás à tábua e ala moleiro!
E assim foi, daquela vez. Só que a meio da subida o motor parou a sério, e falhou o arranque de emergência. – É meu!!! – ordenei ao aspirante. A altitude ainda era baixa, do meu lado havia vinhas, e olivais, e arvoredos pelas quintas, um sarilho. E uma puta duma hélice parada, quando não devia estar. O novato, lá atrás, apertou-se nos cintos de campanha.
O aspirante lobrigou do lado dele um quintalito em pousio, eu aceitei, que remédio. Mas havia um declive imperceptível. Dum lado um pinhal escuro, era o diabo, doutro lado um sobreiral, era a mãe dele.
Ultrapassadas as cristas dos pinheiros, a altura eram quinze metros. Não havia glissagem que valesse. O declive, suave mas a descer, mostrou a cara. E as perfeições aerodinâmicas da passarola revelaram o que já era sabido: de boas intenções anda o inferno cheio. 
Metade do quintal estava passado, o trem insistia em não aflorar o solo, ao fundo os velhos sobreiros eram fatais. O elegante nariz da passarola costumava ceder, se frontalmente agredido. O motor recuava nos apoios, prendia as pernas dos aviadores por baixo do painel e churrascava-os lá dentro.
Mas a cabeça dos homens é mais perfeita que as máquinas que eles fazem. Em situações de emergência tem saídas automáticas, e o resto foi instintivo. Pranchei a cinquenta graus, pus-me a lavrar o quintalito com a asa esquerda e a perna do mesmo lado. Em vinte metros parámos. A passarola deu de rabo para a direita, dobrou-se ao meio, ficou deitada de lado, mas não tocou nos sobreiros. Ficou ela paraplégica, mas o motor não teve um beliscão.
Içámo-nos os três pela janela de cima, fomos parar a uma quinta onde havia um telefone. E o comandante: - Ora porra! Um acidente! Lá se nos vai o troféu da segurança de voo!
A quinteira foi mimosa, deu-nos aos três um pratito de morangos com açúcar, duma horta que lá tinha. Quem é que não ficava emocionado?!
Depois disso os engenheiros vieram buscar o ferido, levaram-no para Alverca, montaram-no no banco, puseram-no em marcha. E o barítono, que era da BMW ou da Piaggio, logo se pôs a cantar, todo agitado, como quem desse o primeiro recital. Vá lá a gente perceber!