sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Coisas há que é bom rever. De horas em quando.

Auto-retrato

(O autor) nasceu na Beira Alta, em 1943. Fez a escola primária numa sala duma casa duma aldeia, onde viviam também um crucifixo e um mapa, uma ardósia, um Salazar e um Carmona. E o fantasma dum Navegador que metia medo à aula.
A mesquinha propina no seminário do Fundão permitiu ao autor escapar à condição de servo da gleba, num trato em que perdeu um amigo e ganhou outro. O que perdeu foi um cavalo baio, que um doutor qualquer tinha na estrebaria e andava precisado dum palafreneiro. O que ganhou foi o Cícero das Catilinárias.
Passados três anos já Deus Nosso Senhor o despedia, pela voz do cónego vice-reitor. Porque na vida é assim, muitos serão os chamados mas poucos são escolhidos. E o autor aproveitou, em vez de emigrar para França, para acabar o ensino secundário no Liceu Nacional da Guarda, em 1963.
Foi piloto militar durante muito tempo, em Angola salvou o pêlo à justinha, na Guiné acompanhou a agonia demente do império. E a derrocada dele trouxe ao autor enormes benefícios, isto porque Deus não dorme e faz boas escolhas, e sabe escrever direito em linhas tortas.
Das múltiplas peripécias de 1975 havia de resultar o afastamento do autor das lides profissionais, num processo que o levou à demissão, sentenciada por um Torquemada qualquer. Foi assim que o autor se licenciou em Letras, fez um mestrado em Cultura Alemã na Uninova, e passou anos a dar aulas apaixonadas.
Mas tudo se recompôs vinte e tal anos mais tarde, por decisão dum juiz que acordou bem disposto e pôs tudo em pratos limpos. O autor voltou ao seu lugar no quadro dos pilotos aviadores, e ficou a saber o que é um coronel de aviário.
Desse tempo há textos seus em várias antologias da guerra colonial, quando ainda lhe não era muito clara a linha de fronteira entre um escritor e um escrevente.
Em 2002 publicou O Mensário do Corvo. E ganhou com ele aguda percepção de que os embondeiros fazem mais falta nas paisagens do mundo do que nos escaparates duma livraria, transformados em papel inútil.
Em 2007 publicou As Aves Levantam Contra o Vento. E, graças a mão amiga, ganhou a consciência de que escreve. Depois disso assumiu a liberdade e o risco de continuar a escrever. De consciência tranquila, enquanto Deus Nosso Senhor quiser.

[Portugalmente - Peregrinação da Lapa a Riba-Côa, Âncora Editora, 2012]