segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Ecos 15***

Aqui há uns tempos fui visitar a última fragata da carreira da índia, ancorada ali à doca dos olivais. E regressava a casa, quando encontrei no pátio o cavalo d’el-rei dom sebastião.
Eu não queria acreditar no que via. O decrépito estado do corcel jogava a seu favor, mas só me conformei ao ouvi-lo jurar pelos santinhos que se chamava cá-vai. É que nem toda a gente conhecerá o pormenor. Ainda infante, trotava el-rei nos corredores do palácio, montado num rinchão de pau amarelo, cá-vai cavalo, cá-vai cavalo. Um dia o jesuíta privou-o do ginete, enquanto ele não rezasse as penitências, e o infante nunca mais recuperou do trauma. Mal se viu armado cavaleiro, logo baptizou desse nome o corcel predilecto.
Não me restava escusa, entendereis pois que eu tenha ficado pregado à calçada. Mas logo aproveitei para saber da batalha de alcácer, onde cada cabeça dá sua sentença. O velho ginetre não precisou de muita corda para começar a falar, e foi assim que disse.
Passado a vau o uéde mocassim, mandou el-rei assentar arraiais e pernoitar. Castelhanos na hoste havia muitos, e terços de italianos e teutões, gente azougada que por toda a santa noite folgou e tangeu alaúdes, só não entenderá quem nunca respirou os túrbidos ares das campanhas de além-mar.
Na manhã seguinte, à hora da alvorada, o arrebol apareceu ensanguentado. Pediu el-rei ao céu um compasso de espera, perante o mau agoiro, mas logo uma vasta moirama começou a agitar alfanges e estandartes por detrás da colina fronteira. Ainda uma vez el-rei mandou suster o levantado afã, mas a tropa já lá ia, só já pôde gritar cá-vai cavalo.
No meio de tão desencontrados falares, ninguém percebeu a algaravia suplicante dos perros de mafoma, enquanto morriam como pardais. Mas o pior foi a grande hecatombe que viria depois, quando a hoste do mulei almélico, nos finais da manhã, tomou posições na charneca. Foi tarde demais que alguém deu pelo enredo, afinal o mouro aliado é que provara o vigor dfas nossas lanças.
Ora se é verdade que um engano qualquer um pode ter, ademais perante perros que são todos iguais, assim embrulhados nas jilabas, não é menos verdade que ninguém vai à ceifa depois de fazer a malha, rematou sagazmente o velho pégaso. Ninguém nos pôde ali valer, e quando el-rei deu de peito num virotão certeiro, começou a escorregar-me pela ilharga e foi morrendo devagar. Ao ver assim a pátria moribunda, eu fiz cara ao deserto e dei às de vila-diogo, de venta aberta às aragens de arzila.
O velho corcel tinha o indiscutível ar sisudo que assumem os cavalos quando falam da história. Mas eu não podia aceitar uma cartesianice destas, já via os meus melhores mitos a naufragar. E logo eu, que todas as noites acendo um archote à janela, para alumiar el-rei que há-de chegar na escuridão. Há dias em que é melhor não vir à rua. Corri a alimária do pátio à sabrada e nunca mais acendi o farol.
[***Ecos de 2002]