domingo, 19 de agosto de 2012

Ecos 13***

No dia em que entrou na expo 98 pela primeira vez, o aníbal caracol ficou tão aturdido que nunca mais de lá saiu. Vivia ali perto há quarenta e oito anos, numa ruela de moscavide, entre paredes greladas de humidade. E para ele a doca dos olivais era apenas uma cloaca a cheirar a enxofre e a lamas de petróleo, onde lavavam os pés os bandos de gaivotas, que chegavam em nuvens dos lixos de beirolas.
Durante anos vira andar por ali milhares de pretos a fugir à frente de esquadrões de catrapilos, que removiam as terras onde iam enterrando o melhor do orçamento da nação. E quando chegou um dia ao largo o clarão dos foguetes das inaugurações, logo uma antiga intuição lhe disse que não era de esperar grande coisa daqueles senhoritos de mão fina, que gastavam os dinheiros do país e se pavoneavam nas televisões. Mas passou um tempo e ele acedeu a dar uma vista de olhos, sem lhe passar pela cabeça a reviravolta que a vida ia levar.
Logo à entrada se deixou agradar da grande luz daquilo tudo, parecia-lhe esta uma aldeia como todas deviam ser, aberta à claridade azul do rio, onde o céu largo se espelhava. Havia nas construções uma harmonia que não sabia explicar, uma graça nas formas das coisas que o tocava por dentro e o deixou pensativo, à medida que foi andando por ali, até as pernas lhe dizerem que não. Nas ruas e nas encruzilhadas não havia buracos nem charcos, qualquer um podia andar ali de olhos fechados. A gente era mais que muita, de cara feliz por aquelas alamedas, e não se ouviam ruídos frenéticos, não se viam lixos no chão, nem garrafas vazias a rolar pelos cantos.
Havia multidões por todo o lado e ninguém se atropelava, ninguém escarrava no chão, ninguém destruía os bancos dos jardins, ninguém ultrapassava ninguém nas filas de espera, e quase se podia jurar que toda aquela gente pagava os impostos com orgulho. Respirava-se ali uma civilização, qualquer um o podia sentir, e o aníbal caracol ficou tão assombrado que já não sabia em que país se achava.
Nesse primeiro dia a noite chegou depressa e o aníbal caracol não regressou a casa. O corpo doía-lhe tanto que se acomodou no recanto dum edifício qualquer. Passou a noite em grande agitação, sem saber muito bem que terra e que gente era esta que o cercava. Sonhou que alguém tinha alargado as fronteiras da exposição, e que, por milagre, a vida era assim em todos os lugares. Mas, quando acordou e se achou desenganado, tomou a decisão de nunca mais voltar ao país cabisbaixo, incivil e caótico, que sempre conhecera. Passou a viver num esconso da realidade virtual.
O mais duro foi quando a expo 98 chegou ao fim. Mas o aníbal caracol conhecia as tradições da pátria, sabia muito bem o que em casa se gasta, e já tinha pronta uma saída. Ao fechar dos portões de encerramento, enquanto os guardas pastoreavam os últimos recalcitrantes até ao palmeiral da entrada, lançou-se em abordagem fulminante à lorcha de macau e zarpou à descoberta do quinto império.
Não teve sequer tempo para enfunar a cruz de cristo. Um couraçado da marinha meteu-o a pique no mar da palha, interrompendo ali o que estava para ser um novo mergulho nos abismos cavilosos da epopeia. Eu achei bem. Depois do que foi a primeira, não é certo acharem-se outra vez os poucos heróis e os múltiplos vilões que uma segunda havia de exigir. E duvido ainda mais de que valesse a pena achá-los. Por mim, confesso já que voltaria a desertar da guerra da guiné, daqui por quinhentos anos.
[***Eco de 2002]