quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Práticas de tiro tenso

Folheei na livraria este Fernando Venâncio e logo o trouxe para casa. É linguista. Tem ficções publicadas que sem prejuízo se lêem. E colectâneas de crítica, que deixou grande vazio. Na cultura do mercado deixou de haver leitores, deixou de haver literatura, passou a haver consumidores de pepinos. E os críticos da arte literária tornaram-se supérfluos. Sobraram os publicistas e algum sobrevivente.
FV é um purista das palavras, como poucos, das malas-artes da literatura. E cultiva aqui a quintessência delas, que é a breve, a curta, e a micro-narrativa. Ou peripécia. Ou verrina. Um texto que por vezes não vai além duma frase, numa concisão que não restringe a largueza. Coexistem nelas crítico e cultor.
Práticas de tiro tenso com as palavras, guardem-nos os deuses dos empilhadores delas!

Por um triz
Vieram uns anjos e pousaram-no sentadinho no passeio.

Sem rede
O trapezista ainda perguntou:
- Achas mesmo? Sem rede?
O amigo malabarista, às voltas com o telemóvel:
- Pois é, sem rede.
Foi impossível chamar o pronto-socorro.

Tipo assim
Sou um viciado em linguagem da plebe. Da plebe culta, esclareço já, aquela com que mais me roço. Assim tipo... Não, eu não estava a anunciar nada. "Assim tipo" é já linguagem da plebe cultivada.
Eu explico. É assim. Um gajo senta-se incógnito, à escuta, junto a uma mesa, num...
Desculpe! Escrevi "É assim"? Juro, isto nunca me tinha acontecido. Supostamente, sou vítima de... Como? Eu escrevi também "Supostamente"?
Bom, senhores. Tchauzinho. Esqueçam.

O baú
Deu-lhe muito trabalho. Mas ao fim de cinco semanas tinha metido tout Leiria no computador.Descarnara-lhes as histórias uma a uma e apertara-as em fórmulas algébricas que até faziam dores à vista. Mas detectava-se já um princípio de movimento.
Passou uma  noite ajustando os algoritmos, e quando a cabeça lhe tombava saiu a primeira frase. Num vago português, sugeria universos paralelos. Inabitáveis todos.
Decidiu então educar o programa. Não tinha Mário Henrique querido educar o Mundo? Naquele quarto sem luz do dia, pôs nisso mais uma semana, se é que o tempo lá fora contava. As latas de refrigerante rolavam pelo chão, as pizas começaram a escassear. 
Estava ele caído de borco, no melhor dum sono, pôs-se a impressora a ronronar. Estremunhado, ergueu a fronte e olhou. Linhas, e mais linhas, e mais linhas. E parou. Retomou a marcha, encheu-se mais uma página. E prosseguiu. Sempre. Até o papel faltar.
Ele ia percorrendo, febril, as folhas. Em todas se narravam coisas com cabeça e pés, aí perpassando, ventura das venturas, um sopro de desvario. Estava inventada a máquina dos contos. E ele poderia, finalmente, trocar o carro, aumentar até a casa. A guerra das editoras não demoraria a estalar.
Era geral convicção ter ele andado remexendo o baú do Mestre.