segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Que mais queríamos nós?!

A implantação da República e o 25 de Abril de 74, que derrubou o fascismo indígena, foram factos determinantes do séc.XX português. A descolonização in extremis, e o consequente regresso à Praia das Lágrimas dum milhão de portugueses, numa onda de sofrimento e desespero indizíveis, foi a hecatombe do século.
A literatura já mostrara aos portugueses uma visão interna e magoada do que foi essa hecatombe, através deste Retorno da Dulce Maria Cardoso. E apresenta-lhes agora uma visão externa, objectiva, distanciada e crua, dum rigor e beleza difíceis de reunir. Que mais queríamos nós, se soubéssemos ler?!

«Durante três meses, vivi em Luanda, no Hotel Tivoli. (...) O Hotel Tivoli estava a rebentar pelas costuras e assemelhava-se às estações de caminho de ferro polacas logo após a Segunda Guerra Mundial: cheio de gente que oscilava entre a agitação e a apatia, carregando trouxas atadas com cordas. (...)
Todos os fins de tarde, um avião sobrevoava a cidade e lançava panfletos. O avião estava pintado de preto e não tinha luzes nem marcas. Nos panfletos afirmava-se que o exército de Holden Roberto estava às portas da cidade, e que entraria na capital em breve, talvez no dia seguinte. Para facilitar a conquista, encorajava-se o povo a matar todos os russos, húngaros e polacos, que comandavam as unidades do MPLA e eram a causa da guerra e de todos os infortúnios que assolavam a infeliz nação. Isto aconteceu em Setembro, quando em Angola inteira havia uma única pessoa da Europa de Leste: eu. (...) Luanda não estava a morrer da forma que as nossas cidades polacas morreram na última guerra. (...) A cidade estava a morrer como morre um oásis quando o poço seca: esvaziou-se, prostrou-se inanimada, caiu no esquecimento. (...) Toda a gente estava cheia de pressa, toda a gente se ia embora. Toda a gente tentava apanhar o avião seguinte para a Europa, para a América, para qualquer lado. Convergiam para Luanda portugueses de todos os cantos de Angola. Caravanas de automóveis carregados com pessoas e bagagem chegavam dos cantos mais remotos do país. Os homens traziam a barba por fazer, as mulheres vinham despenteadas e amarrotadas, as crianças sujas e cheias de sono. (...) A princípio iam para os hotéis de Luanda, mas mais tarde, quando já não havia vagas, seguiam directamente para o aeroporto. Uma cidade nómada, sem ruas nem casas, despontou à volta do aeroporto. As pessoas viviam ao ar livre, permanentemente encharcadas, porque não parava de chover. Viviam agora em piores condições do que os negros no bairro africano próximo do aeroporto, mas encaravam a situação com apatia, com uma resignação desanimada, não sabendo quem amaldiçoar pela sua má sorte. Salazar morrera, Caetano tinha ido para o Brasil, e o governo em Lisboa mudava constantemente. A culpa de tudo era da revolução, atiravam eles, porque antes estavam em paz. Agora o governo prometera a liberdade aos pretos e os pretos tinham-se desavindo entre si, queimando e matando. (...)
Meu caro senhor, só lhe digo o seguinte: perdi o fruto duma vida de trabalho. Além disso, lá onde vivíamos, em Lumbala, dois soldados da UNITA agarraram-me pelo cabelo, enquanto outro me apontava uma arma aos olhos. É razão suficiente para perder o juízo. (...)»
[Mais um dia de vida - Angola 1975, Kapuscinski]