quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Cissiparidade

Cá em casa fala-se por vezes com algum sarcasmo sobre os eruditos. E há-de parecer que assim se lhes falta ao respeito, o que não é verdade. Aqui são tidos em grande apreço os eruditos a sério, os que abrem caminhos novos e desvendam horizontes, os que acendem luzes no nevoeiro, os que nos activam bóias de navegação, O que aqui se despreza com sarcasmo são os eruditos a fingir, aqueles que não cumprem a função, os que vivem para a carreira, os que defendem a cátedra, os que cuidam da vidinha. Apenas marcam terrenos, como fazem os cachorros, e levam-nos ao engano.
Quando se fala da história e da crítica dela, trazem sempre um argumento na ponta da língua: o anacronismo. Dizem eles, como quem descobre a pólvora, que um facto qualquer longínquo tem que ser analisado e visto com o espírito da época. O que é mais do que verdade. Desde que nos não capturem o juízo crítico, a visão da razão e o direito de julgar. 
Um exemplo?! No séc. XVIII caravelas houve a transportar carradas de granito lusitano para a Amazónia, usado para construir fortins que a floresta ainda hoje por lá guarda. Isto hoje só tem um nome, com anacronismos ou sem eles: um despautério de paranóicos.
Mas a catilinária vem a propósito disto e dos 600 anos da ida a Ceuta. O autor remete mesmo para um textozinho seu que é parcial, contraditório, coxo e omisso em questões essenciais: por quem, porquê, com que fins e com que resultados. 
Esta foi a sequência: a corte foi a Ceuta em 1415; só voltou a Marrocos, pela mão do Navegador, em 1437, para o desastre de Tânger; o Navegador, que era um crápula fanático e tinha na mão a riqueza maior dos Templários através da Ordem de Cristo, apenas salvou o pêlo comprometendo-se a devolver Ceuta em troca dum irmão, que por lá ficou como refém; o crápula não cumpriu, condenando o irmão ao sacrifício; em 1458, o Africano, um reizito juvenil manuseado pela fidalguia desocupada, acabou por tomar Alcácer Ceguer; em 1471 tomaria finalmente Arzila e Tânger; e em 1550, o rei João III abandonou as praças de Marrocos. Eram um fardo insuportável para o reino. E assim se passou um século de políticas falhadas. 
Por essa altura já o reino era pequeno para submeter o Indostão, iludido pelo tráfico da pimenta. O escasso povo era arrebanhado pelas ruas, quando não era forçado às grilhetas, para povoar os porões das caravelas. Foi assim que alcunharam Portugal de país de marinheiros, e ainda hoje uns eruditos o repetem. Reproduzindo sem parar a mixórdia mental, por uma cissiparidade que nos é fatal.