quinta-feira, 10 de abril de 2025

As Aves 6-3

À medida que os tanques ocupavam a cidade, seguiam-nos multidões eufóricas que enchiam de ruído largos e pracetas. Era a hora do ranger de dentes que chegava. Já rasga este ministro as temerosas vestes, já outro arranca os cabelos às punhadas, não poucos ameaçam desfazer-se em prantos, um por falência de ânimo, outro por sobrecargas de consciência, todos por contrição tardia. Mas o ministro da guerra acaba por achar uma saída, neste compasso extremo incumbe-lhe o mandato, mais que a ninguém. Avance este ordenança de picareta em punho, logo ao fundo do túnel nos aguardam as luzes do ministério da marinha, saímos o portão do arsenal como simples paisanos, gritamos um viva ao reviralho indispensável sendo, ninguém dará por nós.

E assim foi, que estes soldados trazem a redenção, não são jacobinos cortadores de cabeças. Ninguém dará por eles, como ninguém deu pelas notícias primeiras dos jornais, são as de ontem e do costume, se traziam alguma actualidade logo ali a perderam, os próprios ardinas calaram o pregão.Há-de, porém, ser verdade, se quem o diz é o jornal de maior circulação em Portugal, uma multidão de excelências esteve a inscrever-se no livro de cumprimentos ao Chefe do Estado, que é a excelência máxima, por acaso moramos no mesmo bairro mas não andamos tu-cá tu-lá todos os dias, era o que mais faltava, ninguém nos levava a sério, daí usarmos destas cortesias para nos declarar veneradores e atentos, e mais que tudo obrigados, e foram elas a excelência Costa, presidente da Câmara Corporativa, e a excelência Baptista, ministro do Interior, e a excelência Santos, procurador geral da República, e a excelência Marchueta, governador civil de Lisboa, e a excelência Sebastião, presidente do município da capital, e a excelência Rosas, governador do banco que manda cunhar os dinheiros do império, e a excelência Medina que é embaixador, e ainda as excelências Pinto e Rebelo que não se sabe o que são, e, se mais alguém veio cumprimentar o venerando Chefe do Estado e aqui não é designado, é do repórter a culpa, por não ter reparado em tudo quanto havia que ver, ou de quem lhe censurou a peça, por ter ele visto mais do que devia.

E no paraíso terrestre dum milionário do estanho, por entre centenas de convidados da melhor sociedade internacional, conviveram durante oito dias sete barões, seis condes, cinco princesas, quatro lordes, três duques com as respectivas duquesas, finalmente um rei e uma rainha, e a famosa begun Aga Kahn. Tão ilustre e luzida comitiva é que vinha a calhar a esta mulher, sentada ali sozinha no banco dos réus do terceiro juízo criminal da Boa-Hora. Tem trinta anos e acaba de ser detida na cidade do Porto, onde levava há doze uma vida de trabalho pacato, com falsa identidade. Um dia já distante agarrou nos comandos do avião da TAP que vinha de Casablanca, e andou pelas cidades do país a distribuir panfletos, há trezentos anos era o canto do cego a chorar pelas feiras a Índia que se afogava, hoje requerem-se outras técnicas, o destino é parecido. E foi assim que choveram panfletos em Beja, em Faro, no Barreiro, em Lisboa, não se pense que os tanques arrancam dos quartéis por ter passado mal a noite um capitão. Chama-se Helena esta mulher, que volta finalmente ao nome que lhe incumbe, e vai ser condenada aos curros do Aljube, se nenhum milagre vier a acontecer. Por pouco iludia até ao fim os troianos da Pide, e agora descobre toda a razão que tinha, ao predizer que a derradeira e final salvação havia de ser um oportuno levantamento militar.

De militares quem sabe é o Serviço de Informação Pública das Forças Armadas, morreram em combate o primeiro cabo Fernandes,de Paço de Arcos, o segundo-sargento paraquedista Tomé Costa, de Bubaque, concelho dos Bijagós, este provavelmente negro, e um capitão do Alvendre, para quem não souber uma aldeia a três quilómetros da Guarda, já teve um castro e um castelo e agora não tem nem um nem outro, que o primeiro foi derrubado há muito e o segundo foi destruído agora, e mais dois soldados, o Gaspar de Valongo e o Correia de Cinfães, o primeiro cabo Castro, que não era de pedra, como o outro, e veio de Guimarães, e o furriel Melo, este da Vila da Feira.

Alguns deles seriam homens casados, é o natural da vida, se tinham filhos quem vai agora pôr os olhos neles, incómoda questão que nos fica em aberto, não sabemos responder. O mais certo, porém, é ser a maioria gente solteira e descomprometida, jovens que mal tinham começado vida, reparemos nas fracas patentes de quem ainda não passou da flor da juventude. Pois forte razão havia para todos se manterem nesta ocasião bem vivos e atentos, a oportunidade não se repetirá, acaba de ser proclamada a rapariga ideal deste ano, tem desassete vicejantes anos, é no Porto que vive e chama-se Ana Paula. Anda um homem à procura a vida inteira, tantas vezes se engana, e se repete, e mulher a gosto nem vê-la, e agora tínhamos aqui toda a papinha feita, salvo seja, a rapariga ideal nestes exactos termos, porque os testes não mentem, muito menos ia agora enganar-se o olho clínico do júri. (Cont.)

quarta-feira, 2 de abril de 2025

As Aves 6-2

O povo de Cacilhas começou a descer o portaló dos barcos que atravessam o rio, e tropeçou nos soldados que faziam guarda às esquinas da praça, não é que viesse a despropósito uma revolta da tropa, importa é saber a mando de quem estes vão e com que fins, quem terá ouvido aqui alguma inconfidência é o rei de bronze que está ali de vigília no meio do terreiro. Mas tudo isto são manobras de populacho republicano, delas se precata el-rei, indiferente e alheio a esta disputa, tanto precisávamos nós de o saber e ficamos na mesma.

Vem descendo a avenida esta mulher, traz encostado ao peito um ramalhão de cravos, parece que vai engalanada para a festa, e ainda não sabe que a uma festa se dirige. É dia de aniversário na casa onde trabalha, razão de tão generosa provisão de flores, modo maior de coroar a fidelidade dos clientes. Mas desde manhã cedo se estão ouvindo na rádio velhas cantigas há muito proibidas, do Zeca Afonso e outros, ou dormem hoje os censores ou alguma coisa aqui aconteceu, entre boatos e rumores toda a gente anda num alvoroço, e mais que todos o patrão timorato, fechou o restaurante e mandou para casa os empregados, escusadas são as flores. Ao chegar ao Rossio encontra a mulher os primeiros soldados, simpáticos parecem, se não é justo dizer que mais parecem civis, em cima do camião da tropa. Um deles pediu-lhe um cigarro, num gesto que há-de considerar-se peregrino, visto o tempo e as circunstâncias, ofereceu ela um cravo vermelho, era o que tinha. O soldado engrinaldou-o na boca da espingarda, por um momento olhou a obra e achou que estava bem, porque sorriu. A mulher viu-se tomada por um contentamento que não sabe explicar. Deu o seu gesto em repetir-se, sem o saber tinha baptizado a revolução. E soltara, entre o povo e a tropa, uma conivência de que ninguém tinha memória.

Também Geneviève guarda lembranças da revolução mas ruas de Paris, em 68, delas nos está dando entusiasmada conta. Gabriel vai ouvindo e acaba a sorrir, discretamente. Lembro-me bem, concede ele, o mundo viu como se esgotou nas bombas a vossa gasolina que ninguém distribuía, por isso andou a pé nos bulevares muita gente que não tinha melhor pretexto para o fazer. O mundo viu as vossas duquesas, podres de chiques, a distribuir boquinhas de êxtase e cigarros de luxo à juventude que incendiava automóveis e esventrava calçadas, entre batalhas com esquadrões da polícia, enquanto um barão de Rolls-Royce distribuía comunicados de apoio à revolta, conduzido pelo motorista de uniforme. O mundo inteiro ouviu-os gritar que era proibido proibir, que ser realista era pedir o impossível, e exercícios que tais. Dizem que foi assim a vossa revolução, uma espécie de tédio da fartura, e não serei eu a negá-lo, também entre nós houve coisas parecidas, vistas à proporção. Mas, ao comparar histórias e lembranças, convém saber primeiro de que estamos falando. Nesse tempo, talvez houvesse no meu país um português antigo, não sei onde, com memória de ter lido, alguma vez, um jornal que não fosse retalhado pela censura. Três quartos dos meus concidadãos nunca tinham visto uma urna de voto, viciada se convinha. e quem tivesse menos de cinquenta anos não vivera um único dia da vida em liberdade. O ponto de partida da minha revolução era a penúria original, era a mordaça abjecta, era a histórica cegueira, era a mentira iníqua. Andaram entre nós os vossos pensadores, que a novidade e os ecos de anarquia atraíram, lembro-me deles a analisar movimentos e a semear ilusões, a explicar como se virava o mundo sme patrões, a empurrar docemente o povo para becos sem saída. Da memória das vossas revoluções, o que reverencio é o estrondear da tomada da Bastilha, é o fragor fugaz das barricadas da Comuna, é o pavor da vossa fidalguia empoada e o começo do mundo que se lhe seguiu, bom ou mau tenha sido.

Vão três pessoas aconchegadas no limitado espaço duma carruagem de comboio, em conversa amena sob o dossel da noite, parece que tudo as vai aproximando, até que vem meter-se entre elas um mar inteiro de distância. Há uma perturbação no ar, ao instinto sagaz de Geneviève não escapa a intolerância radical de Gabriel, que não disfarçou o sarcasmo, será tudo obra do cansaço e do rodar da noite. A mulher deixa cair a última pergunta, primeira de todas na lógica das curiosidades, quer saber por que vão neste comboio os viajantes. Porque a revolução é como o velho Cronos, responde Gabriel, cedo se põe a devorar os filhos, mormente os que mais ideal e maior zelo lhe entregaram, é dos livros que nenhum logrará escapar. Mais não disse Gabriel, e a isto não soube Geneviève o que responder, quiçá ficou na mesma, o silêncio instalou-se.

Gaspar lamenta o rosto da mulher a fechar-se, próprio de quem se ausenta, distante vai já Gabriel, recostado finalmente na poltrona, de olhos fechados, as mãos cruzadas sobre o ventre inquieto. É da natureza da revolução, pensa Garpar, tão difícil de levar à prática por não haver possível consenso sobre ela. Ponham-se dois a discuti-la, que logo este alega um sofisticado mal-de.vivre onde aquele argumenta com a fome ancestral da terra, sonha um com o devaneio da liberdade sem limite, quando outro aspira apenas à mesquinha dignidade original do ser humano. Todo o movimento é ditado pelo modo como cada homem vê o mundo, segundo o lugar que nele ocupa, houvesse geral entendimento sobre a revolução e logo ela se tornava supérflua.

A nós saiu-nos a personagem dos limites da urbanidade, apuradíssima no lugar e na circunstância, forçoso nos é silenciá-la. Ainda bem que Poitiers está perto, é o destino da mulher. Cabe agora a Gaspar devolver-lhe o saco de viagem, ela endireita a capa e despede-se numa cortesia discreta, se este aceno não foi uma afeição que apenas aflorou. No resto da noite só Gaspar velará, entregue ao fluir dos pensamentos. Acrescentemos nós aqui o que por dizer ficou, desses dias de júbilos e risos, de ilusões e de fraternidades que não vão repetir-se, desses dias de angústias e delírios em que a vida ganhou um final sentido novo, e a certeza segura de que o futuro estava ali, ao alcance da mão. (Cont.)

 

segunda-feira, 31 de março de 2025

As Aves 6-1

O comboio entrou devagar na estação de Bordéus, inundou de ruídos a majestosa nave desta catedral de tijolos e aço, erguida há um século pela fé no progresso mecânico, e parou ao longo do cais, com grande chiadeira de ferros. Ao fundo um relógio colossal marcava a meia noite. Cansados da imobilidade, os viajantes agitaram-se quando a luz crua dos holofotes invadiu o compartimento. A conversa parou, e Gaspar levantou-se a esticar o pescoço para a vastidão das plataformas, a geometria rígida das vigas de aço, a amplidão das grandes vidraças abertas para o nada da escuridão exterior. As coisas ganham outro sentido com a agitação febril das multidões diurnas, pensou Gaspar, enquanto uns poucos passageiros desciam ensonados ao cais e outros tantos embarcavam, por tão pouco nem valia a pena ter parado. E ficou a imaginar o frenesi cosmopolita alastrando pelas gares, burgueses apressados e mulheres perfumadas passando, ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó coisas todas modernas, up-lá hô! E tudo isto são êxtases de poeta sensacionista inebriado de estrépitos da modernidade, ou será este um modo de viajar pelo mundo para quem outro não teve, comparado com isto o meu país é um pequeno recanto de província.

Já, porém, Geneviève insistia, presa ainda no fio do discurso de Gabriel, a querer saber do confronto com os fantasmas antigos, como foi que as flores apareceram, não é muito comum ver militares a derrubar os mitos da história, bem ao contrário, se para eles vivem, nem a atulhar de flores a boca dos canhões, que para mais duros destinos foram feitos.

Quem tinha razão era o cabo João Saar, retomou Gabriel, depois duma hesitação. Por tão redonda ser a bola do mundo, tanto os portugueses andaram em frente, que vieram um dia a achar-se no exacto ponto donde haviam partido. O fim da guerra era o mesmo fim do império, e era o fim da tirania mais longa do mundo, Portugal acabara por dar a si próprio um nó cego, que só os militares podiam desatar. Ora é sabido como a tropa foi feita para executar as ordens que de cima para baixo sempre nascem, ao invés da geral natureza, em que tudo rompe de baixo para cima, e assim ficará justificado o traço peremptório de tantos regulamentos, e o terminal rigor dos códigos deontológicos. Não sendo de esperar que a ordem de levantamento brotasse um dia lá do alto, que é onde os mitos moram, e viesse descendo a longa escadaria, até chegar às mãos que obrigam a mover-se as culatras dos canhões, houve que fazer as coisas ao inverso, por uma vez seguindo as leis do ordinário mundo. Uma coluna de subalternos partiu de Santarém numa noite de Abril e galopou furtiva até Lisboa, ao romper da madrugada estava no Terreiro do Paço onde os ministros se juntavam, não tardou muito e já os carros de assalto do governo tomavam posição na Ribeira, prontos a tirar a limpo o que ali se passava. Se estes canhões apontados a nós se lembram de abrir fogo, era uma vez uma revolução, pensou o capitão rebelde, ciente da fraqueza dos seus meios.Para o que der e vier guarda no bolso uma granada, e avança pela rua do Arsenal, de braços levantados, disposto a parlamentar.

O homem está sozinho no meio da rua, diante dum carro de combate, o olhar fixo na boca do canhão. Ao lado, um brigadeiro floreteia o pingalim e grita ordens de fogo. E qualquer coisa remota se põe a estremecer, o mesmo nada indecifrado que se punha a vibrar no peito deste homem nos matos da Guiné, quando as granadas nocturnas de morteiro caíam a assobiar e lhe explodiam cegas à volta. Lá sempre havia o refúgio da terra, como um regaço materno acolhedor. Mas agora o homem está de pé em frente do canhão, à luz crua da manhã, os braços levantados sobre as pedras madrastas da calçada, e todo o peso do peito lhe assenta no fio gelado duma baioneta, se Deus terá hoje acordado cedo, era esta a hora de intervir.

Já o alferes recusa cumprir o comando hierárquico, já o brigadeiro vocifera ordens de prisão e repete a ordenança, que seja o soldado a disparar. Mas o canhão permaneceu calado, enquanto rodava lentamente a boca escura para os lados do rio, e foi nesse instante que a revolução venceu. Os mitos foram desabando na calçada em catadupa, a explodir nuam auréola de estilhas que luziam, pareciam afinal manipansos de filme em movimento lento, e no peito deste homem alguma indecifrada coisa voltou a serenar.

A esta hora acordava a cidade. (Cont.)

sexta-feira, 28 de março de 2025

As Aves 5-9

Incapaz de ver os erros do passado, só restava a Portugal passar a vida a repeti-los. Um dia tomou conta do governo um professor de Finanças, bisonho camponês que a igreja modelou num espírito de frade, austero, ardiloso, agudíssimo, implacável. Conhecia como ninguém a alma dos portugueses, era ele a sua mais perfeita imagem. Desdenhava da fatuidade dos salões e desprezava as multidões primárias, era um deserdado que só acreditava em elites. Não apreciava indústrias, por tanto se temer do ruído dos operários a sair do bojo das fábricas, proibiu a coca-cola para que não houvesse exemplos de sociedades eficazes, sonhava-se ministro dum rei absoluto deslocado no tempo, um Pombal despótico e tirano a quem sobrava a manha e faltava o esclarecimento. Governava o país do fundo duma vela, e, milagre supremo, pôs em ordem as finanças pelo cálculo mais elementar. Domesticado o povo pela inanição e pelo silêncio, mourejavam três quartos dum país infantilizado há séculos, para que o restante quarto vivesse à tripa forra. Era esta a lei universal do mundo.

Mas a história, que nunca tem pressa, acaba sempre por chegar, e o fim chegaria também aos impérios coloniais europeus. Os mapas do mundo começaram a mudar, ganhavam um país novo em cada dia. A França majestosa, do alto da sua soberbia, fugira da Indochina com as calças na mão, e retirara-se da Argélia antes que as mesmas lhe caíssem definitivamente pernas abaixo. Empurrados pelo vento, de gurupés apontado a casa, viam-se passar, mar acima, rebanhos de caravelas roídas pelos búzios, a adornar de fantasmas de almirantes de barbas e conquistadores zarolhos, de destroços de piratas e negreiros, de missionários comidos pelos cafres, de donatários cúpidos, de exploradores de sertões, e dos vagamundos de que falavam os livros antigos. Alheado do mundo na penumbra da cela, o professor de Finanças pôs-se a desfraldar os antigos cenários pintados da epopeia, a deformar a história para melhor dar vida aos mitos. Do dia para a noite as colónias deixaram de o ser, e a um toque de vara de condão sumiram-se no ar os portugueses de primeira, de segunda, de terceira, qualquer rústico de Fafe era tão português como um nómada qualquer do deserto de Moçâmedes, todos filhos duma nação que não cabia na Europa inteira, vastíssima de Lisboa à Sibéria, e o ponto mais alto e subido da pátria era o pico do Ramelau, na parte leste da ilha de Timor. Um dia, três mil soldados de chinelas, sem munições nem armas, vieram a achar-se em frente dum exército de quarenta e cinco mil indianos, que reclamavam Goa. Invocado ali o infante D. Henrique, logo ordenou o professor de Finanças que nem um português sobrasse vivo, para que o destino pátrio se cumprisse. Já sorte menos funesta colheu os dois amanuenses, que no forte de São João Baptista de Ajudá mantinham vivo o esplendor imperial, e velavam a memória do tráfico negreiro. Foi-lhes apenas ordenado que lançassem fogo à praça, antes de a abandonarem aos negros e baterem em retirada.

Um império de marionetas de feira, que durante séculos arruinara a alma da nação e punha a rir o mundo inteiro, tinha de acabar como sempre vivera. E quando a guerra começou nas fazendas do Congo e nos cafezais dos Dembos, abrindo o pano ao último acto da tragicomédia, ninguém ficou surpreendido quando o lapuz das Finanças atulhou de soldados os porões do Niassa e mandou levantar ferro para Angola, rapidamente e em força. A indolência e a cupidez, que tinham alimentado a vesânia do império, transformaram-se em paranóia. Diante do turbilhão que se podia imaginar, qualquer simples espírito cristão saberia que era urgente salvaguardar os povos, as vidas,os haveres, em vez de os lançar a todos num braseiro. Mas os políticos dementes de Lisboa tomavam-se por actores dum destino providencial, estavam ali para defender da barbárie a civilização ocidental. Vinha aí, sem demora, a terceira guerra mundial. E o país devia, assim,subir ao gólgota, para assegurar, no fururo, a salvaguarda do império e a redenção do mundo. Um dia, o mesmo mundo ia dar-nos razão.

Mas não chegou a dar. Nem nós a tínhamos, nem a prometida guerra apareceu a trazê-la numa bandeja. Em lugar disso, o que fez o mundo foi ostracizar-nos, foi mandar-nos rezar uma missa por alma, foi esquecer que existíamos. E realmente, se alguma vez o foi, o país de Portugal deixara de existir. O melhor da juventude era sacrificado no açougue dos sertões de África, ou desertava aos milhares, preferindo lavar à mão os pratos todos da Europa, a deixar-se trucidar nos escombros da história. Abandonado a si mesmo, a ver se escapava à fome, o povo há muito que fugira a salto, das aldeias abandonadas a velhos tristes, a crianças ao deus-dará.

De forma que, durante treze anos, a tropa fez das tripas coração, para dar aos políticos dementes de Lisboa o tempo de escreverem o testamento do império. Mas eles carregavam a maldição da Índia na alma, e passavam a vida a jurar que não haviam de ser a geração da traição. Preferiam a hecatombe dum exército derrotado a afogar-se no mar, ou a galopar sem norte pelo sertão, ao compasso dos tantãs da sanzala. Foi por isso que a minha revolução aconteceu. (Cont.)

segunda-feira, 24 de março de 2025

As Aves 5-8

Mas os filões do sertão haviam de exaurir-se, e um dia o Brasil tornou-se independente, com grande consternação geral. Assim desamparado, passou o reino a viver de mão estendida, governado por estrangeiros, ao sabor dos encontrões da história, igual a uma torrente que as leis da natureza impedem de estancar, e do alto do monte se despenha aos trambolhões. De mãos vazias, quando as deviam ter carregadas de vergonha, os poderosos do reino puseram-se a alimentar de lendas a escudela do povo, a entreter-lhe a alma com epopeias de bruma, a ofuscar-lhe os olhos com glórias de artifício, como se faz aos touros nas arenas. Entretanto burgueses do comércio foram tomando o lugar duma aristocracia degenerada e frouxa, desempregada dum império que há séculos inventara, e que não chegou a existir. Sonhavam só com uma noiva fidalga, com o aluguer dum título, com a pechincha dum brasão, para ascenderem ao baronato. O resto era um país de heróis do mar, a divagar entre quimeras, a consolar o ouvido com ecos de miragens, e a bradar às armas por esplendores de antanho.

Mais porque os meteram à força nos navios ingleses do que por acreditarem em tais brados, é que milhares de portugueses acabaram imolados nas trincheiras da guerra da Flandres, onde ninguémos chamou, onde ninguém os queria, ou vieram a morrer perdidos nas aldeias, dos peitos que trouxeram rebentados dos gases das granadas. Mas a maldição da Índia mantinha-se em vigor, e era preciso salvar as colónias africanas da cobiça europeia. Verdadeé que só os degredados lhes sabiam dizer o paradeiro, mas foi delas que a hidra passou a alimentar-se, com redobrada sofreguidão.

Gaspar ia ouvindo o companheiro sem pestanejar, já repeso de apressados julgamentos, dos juízos levianos que escutámos. A tão pouco se resume o drama português, que há muito tempo assim é e agora vemos repetido. Aos que tocam a guitarra falta a unha, a quem tem unha interdita-se a guitarra. Ganham os tocadores de rabecão. E com estes pensamentos questionava Gaspar a rudeza duma frase, a segurança duma afirmação. No íntimo, porém, a entender finalmente a imagem fatal do plano inclinado, por onde o país há séculos deslizava, no íntimo a entender que a guerra das colónias fora um maldito fadário inelutável, que só uma final rebelião podia ter quebrado. 

Geneviève tornou à sua. Por certo houvera em todo o reino algumas vozes críticas, quis saber por que ninguém afrontara o destino, durante tantos séculos. Concordou Gabriel que as tinha havido sempre, múltiplas e lúcidas, agudíssimas vozes de poetas, de metres e diplomatas, de alguns fidalgos e até príncipes da corte. Mas vozes insubmissas acabaram sempre em Portugal penduradas num prego atrás da porta, que é onde se enforcam os trastes sem valor, ou afogadas na poeira húmida de sótãos e masmorras. A começar pelo próprio Camões, que sem remorso foi deixado a morrer na indigência, antes de fazerem dele o símbolo da pátria. Ao longo dos tempos, todas as castas poderosas lhe usaram a épica voz para dar vida aos mitos de que se alimentaram, escondendo-lhe, porém, o verbo crítico, da estulta e fatal temeridade, da cupidez corrupta, da rudíssima e torpe ignorância, e por fim da mísera condição de abandono da pátria, caída em apagada e vil tristeza.

E outros houve, ao longo de séculos, que fizeram à pátria perguntas que ficaram sem resposta, e com ele irradiaram uma luz vivíssima, e acabaram na fogueira, ou na masmorra, ou no exílio, para sossego do trono e do altar. Em nome da pátria, os poderosos devoraram sempre os mais sabedores de todos, os mais insubmissos e os mais lúcidos, os Damiões de Góis e os Teives humanistas, os Vieiras e os Cavaleiros de Oliveira, os Verneys e os Ribeiros Sanches, e até os duros Pombais, quando existiram, os estrangeirados iluministas, os liberais malhados, os republicanos maçons, os socialistas utópicos, os Jesus Caraça e os Azevedos Gomes, os Rodrigues Lapa e os Pulidos Valente, as Marias Lamas e os Jorges de Sena e os Luíses Gomes, e outros quantos, nem um célebre bispo do Porto escapou. (Cont.)

quinta-feira, 20 de março de 2025

As Aves 5-7

Facto é que cedo houve quem se pusesse a falar dos fumos da Índia, que traziam mais riscos de vida que proveito. E alguma real voz afirmou, na assembleia das cortes, que a sustentação do império só poderia obrar-se por milagre. Entretanto a coroa alguma coisa havia enriquecido, Lisboa alcançou uma prosperidade requentada e balofa, é verdade que uns poucos ganharam uma carreira, outros muitos apressada sepultura, mas ao país geral restavam só miragens, a tornar cada vez mais imprecisa, cada vez mais difusa, a linha do horizonte. 

Como se tanto não bastasse ao reino, confundido entre um império que não chegava a sê-lo, e um mar feito cemitério de náufragos e mitos, um rei menor, fanatizado e débil, desembarcou em Marrocos, avançou pelo deserto e pôs-se a fazer negaças a Mafoma. Por lá deixou, insepulto, quanto de Portugal restava, salvou-o a honradez de lá morrer também. Assim órfão de tudo, numa agonia mortal que hoje ninguém poderá avaliar, só restou ao aturdido povo recusar as más novas que vinham de além-mar. Saudoso das miríficas glórias do oriente, incapaz de entender o destino, correu a sentar-se numa duna, cego do nevoeiro, à espera do rei que havia de voltar na espuma da maré.

É nossa humana condição geral. Por um dia ou por um ano, não raro durante séculos, todos negamos a realidade que nos é impossível suportar. O que há, porém, de trágico, no caso de Portugal, é que ele ainda hoje espera o rei que nunca veio, ainda hoje continua a buscar numa Índia qualquer a solução final, ainda hoje não aceitou que só no cais da sua terra se mantém firme o chão.

Com a sujeição a Espanha, e as derrotas e traições às mãos dos holandeses, tantas conquistas em breve estavam reduzidas a um par de praças decaídas. Nas feiras do reino começaram a correr folhetos a tostão, e os troveiros de rua profetizavam a queda iminente da Índia imperial, que figuravam já no leito de morte, com uma vela na mão. E o rei restaurador confidenciou a um visitante francês que a abandonaria com prazer, se houvesse um modo honroso de o conseguir.

Mas não havia então, nem haveria nunca. E cem anos depois, encontra o segundo viajante a mesma insânia imperial mudada para o Brasil. É verdade que tudo aqui era diferente. Enquanto na Índia se tentou ordenar uma impossível sociedade de guerra e de comércio, onde o mais ínfimo gesto se escorava, cada dia, no gume duma espada, o Brasil foi terra generosa, vaca leiteira do reino fecundada pelo sangue de escravos, que se desentranhou em proventos para os mercadores europeus. Mas o resultado final foi semelhante. Enquanto na Europa se ia inventando a riqueza pela experimentação e pela indústria, continuavam os portugueses a perseguir miragens, a cortar as amarras que os prendiam ao cais, a arrancar as raízes da alma e a lancá-las ao mar como coisas inúteis, ofuscados somente pelo brilho das pepitas do Rio das Velhas. E agora era a própria governação real quem degolava o reino, quem a mãos ambas lhe torcia o garrote nas veias por onde a vida devia fluir, quem deliberadamente lhe metia a cabeça no laço da forca inglesa. A harmonia das núpcias entre o altar e o trono atingia o esplendor. Lisboa aguardava no cais a chegada do trigo francês com que matava a fome, e nos pátios corria uma aragem atávica e fadista, dada às tragédias de faca e alguidar, que era fruto dum espírito alienado e sorna, afeito à delação dominicana. O rei desbaratava o que não tinha, um dia morrerá sem deixar no tesouro com que pagar ao coveiro, as cidades abarrotavam de conventos que eram sucursais do inferno, a marinha do império eram cavernames podres a boiar do Mar da Palha, e o povo deserdado, bêbado da superstição e do fanatismo dos padres, acorria ao sangue das touradas na Ribeira, ou a ver queimar hereges  no Rossio, o olhar estonteado pelo brilho vivíssimo da talha dos altares. (Cont.)

quinta-feira, 6 de março de 2025

As Aves 5-6

Geneviève agitou-se no banco, no íntimo a sentir-se culpada, da ligeireza com que falara da revolução das flores. Quis saber por que dava Gabriel ouvidos a palavras de estrangeiros, em vez de usar vozes de portugueses, se da portuguesa história se tratava. Gabriel deixou o reparo no ar, urgia concluir.

O que pretendo mostrar-lhe, por isso de tão longe parto, de onde tudo começou, é que a aventura da Índia foi para os portugueses uma tormenta muito maior que a nau, como se ouve dizer, foi maldição que o país ficou, desde então, condenado a remir. Como se, ao vencerem o mar, tivessem os marinheiros desafiado uma qualquer lei do universo, ou um regulamento caprichoso da vida. Alguns no reino o perceberam, alguns em vão se lhe opuseram, com tão poucos homens e mais diminutos recursos, muitos ainda hoje não entendem como tudo foi possível. E o espanto maior, para quem nos conheça bem, é que toda a empresa se iniciou no mais perfeito conhecimento e no maior rigor da técnica. Os portugueses construíram as naus mais avançadas desse tempo, conheceram os ventos e as correntes do mar como ninguém, elaboraram cartas, artes de marear e roteiros de viagem que eram a cobiça dos mestres europeus. Venceram as lendas antigas do mar tenebroso e alcançaram a Índia, e submeteram as deslumbrantes terras orientais à força de canhões, e feriram de morte culturas requintadas, e apoderaram-se das rotas do comércio com uma ferocidade selvagem, e trouxeram à Europa os ouros da Mina e do Monomotapa, e os escravos de Ajudá, e as canelas de Ceilão, e as pimentas do Malabar, e as porcelanas da China, e as sedas do Japão, e os cavalos da Pérsia, e os algodões de Cambaia, e a noz moscada das Molucas, e os rubis, as pérolas, as lacas, e até um rinoceronte que emboscaram num sertão de Bengala e vão oferecer ao papa. Já se arredondam em Roma bocas de estupefação, sabes tu lá, minha filha, diz-se que vai chegar aí o supino fulgor do exotismo. Porém o mor espanto não vamos nós poder vê-lo, e é o que haveria de mostrar-se nos grandes olhos da béstia couraçada, por se ver assim à frente dum leão, ainda por cima papa. É que já se vai afundando, à vista de Génova, a caravela que o transporta, tarde se arrependem os náufragos de tanta gala perdida, e mais que todos repesa está a fera, para tão pouco não merecia a pena ter dado a volta a metade do mundo, de estômago revoltado. Um dia há-de ela entrar no palácio de S.Pedro, mas pela simples porta do cavalo, já inofensiva e amparada em cabrestantes, a barriga inchada de palhas amassadas e os velados olhos mordidos dos caranguejos.

Parecia a vida uma festa. Porém, não tardou muito, já os cofres do rei merceeiro abriam bancarrota. E, do alto dos penhascos do Cabo da Tormentas, começaram a avistar-se os bandos de chacais e as esquadras de bucaneiros europeus que demandavam a Índia, tomados de cobiça. Como se nesta caçada tivesse tocado aos portugueses o papel do podengo, no levantar da lebre que outros haveriam de pendurar à cinta. São desses europeus as vozes que me interessa ouvir. Não chamo a terreiro, porém, um estrangeiro incerto e qualquer, antes estes dois de inquestionado saber e não discutida ciência,  que viveram connosco e tiveram de nós desafogada vista. Ainda o delírio do império não ia além dos primeiros passos, já o corpo da nação portuguesa se desagregava, e o viajante primeiro divisava os sinais da ruína. Do mesmo passo que eram empurrados para a Índia, os portugueses cortavam as amarras que os prendiam ao cais, condenavam a sua terra ao abandono, arrancavam as raízes da alma e lançavam-nas ao mar, como coisas inúteis. Foi por tal ver que ficou tão espantado o cabo João Saar, marinheiro entre muitos, da armada holandesa em Ceilão. Já que, onde quer que cheguem, logo os portugueses pensam instalar-se para o resto das vidas, sem mais tenções de voltar a Portugal. Não sei que terra a deles há-de ser, a mim quem me deraque passem seis anos de serviço para retornar à Europa. Pois sendo redonda a esfera, não se dão conta, os pobres, de que sempre ao mesmo sítio há-de tornar quem em frente vai correndo. (Cont.)

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

As Aves 5-5

A senhora conhecerá este quadro dos livros, não duvido, mas convir-lhe-á aqui voltar a ele, com os olhos atentos do imaginar. Sai, manhã cedo, dos Estaus do Rossio,a procissão. Por ter aqui a morte o primeiríssimo lugar, vai à cabeça da fila a ossada do Vila Real, ao dorso dum verdugo encapuchado, naquela caixa escura onde esperneiam horrendos demónios escarlates. Atrás da mancha negra dos domínicos, que lá vai adiante fraldejando o pendão da justiça e da misericórdia, seguem os condenados, por ordem crescente das culpas confessadas. Toda a cidade se juntou na Ribeira, Lisboa inteira acotovela-se à volta do patíbulo para ver espezinhados os hereges, para sentir-lhes o uivo medonho das carnes lentamente esturradas, não poucos se acotovelam para alcançarem um lugar mais fronteiro, para receberem em mão as bênçãos que um frade está esparzindo, porém o mais da ruidosa multidão dispara chufas e pedradas, e tochas de pez a arder, e, por não poderem estes quadrilheiros conter a populaça tomada de furor, recebeu o lobisomem de Alenquer uma zagunchada no rosto, em tal péssimo estado irá ele apresentar-se à justiça divina, com este olho direito vazado e descaído, ainda bem que já leva aprontada a justiça.

Assim feitos em fumo, perderam estes de tudo a melhor parte, que é o banquete da comemoração. Não faltam à mesa priores de conventos, dignitários subidos, ordinários e deputados, párocos seculares e familiares do Santo Ofício. Nem faltam as doçarias e mimos da freiria, as talhas de vinho do Cartaxo e muitos peixes do generoso Tejo, múltiplas aves de pena e carnes numerosas, louvado seja Deus por tamanha abundância, só carneiros consumiram-se catorze.

Era assim. Mas já dois séculos antes, mal tinha o Gama achado o caminho das Índias, houve entre nós outro monarca excelente e piedoso, que lá fora estipendiou os melhores mestres do moderno pensamento, para ilustração das escolas do reino, um deles, escocês, o viria a crismar de rei dos muitos nomes. Quem não tem ciência paga por ela, já uma vez ficou dito por ser verdade, como se vê tão antiga como a própria ignorância. A salamanca foi ele requestar Clenardo de Lovaina, um homem de saber e modestos costumes, para educar os príncipes seus filhos. Ora já seu pai, para calamento e satisfação do fanatismo, ao mesmo tempo em que abria as portas do império, logo lhe amputava as pernas, ao expulsar do país os hebreus, donos dos cabedais e do saber que a empresa sumamente exigia. De modo igual, o piedoso rei dos muitos nomes, enquanto chamava os homens que às escolas trariam saber e civilização, logo mandou vir de Roma o jesuíta, que sem demora faria do reino coisa sua. Ademais, por lhe parecer isso tão pouco, logo aos mesmos renomados mestres cortava as pernas e o pescoço, requisitando ao papa a Santa Inquisição, que sem demora os meteria a tratos, por hereges. Entenda quem puder, e antes que tarde seja ouçamos a Clenardo, ele nos contará o que viu e deixou dito.

Chega do mar escravaria e ouro, e pimenta às quintaladas, por isso vive Portugal à grande e à francesa, qualquer trabalho útil se tem como vergonha. Jazem os campos de pousio a monte, que todos sevão ao cheiro da canela, às margens do rio de Meca, e muito melhor não estariam as artes mecânicas, se os ruivos europeus não viessem cá dentro exercitá-las. Os naturais desdenham servir-se das mãos, e tudo é feito por escravos e mouros cativos, esses que o próprio Deus despreza, ele é a preta da Mina que vai ao mercado, é a preta da Mina que lava a roupa, é a preta da Mina que varre a casa, é a preta da Mina que vai pela infusa de água, é a preta da Mina que faz os despejos à hora conveniente, e é ainda a preta da Mina a parir os filhos escravos com que havemos de lucrar no mercado, como se fizéssemos criação de pombos. Todos somos fidalgos, ou para lá caminhamos, por isso nos acompanha sempre, rua abaixo ou rua acima, a mesma comitiva, adiante os dois criados batedores, e um terceiro que nos leva o chapéu, e um quarto o capote, não vá ele chover, um quinto segura as rédeas da cavalgadura, um sexto vai ao estribo, a cuidar-nos da seda dos sapatos, um sétimo traz a escova, com que nos limpa do fato as poeiradas da rua imunda, um oitavo nos estenderá o pente em sendo necessário, e ao nono caberá enxugar com uma fralda o suor da cavalgadura, vindo ela a ser desmontada. Com tudo isto sofre a mantença da casa, onde a custo se acha que comer, mormente quando chega o domingo, dia em que ninguém apanha rabanetes na praça.

Aqui chegado, deu Gabriel com a ouvinte rendida ao fio cristalino da sua erudição. Não venho com estas coisas a dar-lhe lições de história, apressou-se a dizer, por certo dispensará as minhas, se as teve melhores. Porém, vastos demais são os tempos e muito longa a forma de os decifrar e dizer, para vidas tão curtas como as nossas, cada um há-se saber da sua. (Cont.)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

As Aves 5-4

E a quem hoje ainda sobrem dúvidas, bastará que se alongue numa tarde soalheira ali ao poviléu dos Povos, a seu tempo uma terra importante, dois passos a pé além de Vila Franca. Lá se erigiu um dia uma fábrica inteira de curtição de couros, com peitas e subornos se aliciaram na Escócia os mestres que haviam de trazer os segredos da casca dos carvalhos, chegaram mesmo a subir o Tejo as fragatas carregadas de peles vindas do Maranhão. Mas logo o inglês moveu empenhos, logo às secretarias da corte fez chegar ameaças e ralhos, a fábrica é que nada veio a fabricar. E o que dela restou é o que aos olhos se nos mostra, a alvenaria perfeita dos muros, a ruína das casas dos obreiros que não chegaram a sê-lo, viriam a desabar finalmente os telhados, figueiras bravas cresceram pelos pátios, tufos de silvados irrompem hoje das janelas.

Ia nesta altura a meio o século das luzes na Europa, retomou Gabriel, e mais que todos brilhava o vivíssimo espírito francês, porém por cá o céu continuava obscuro, do fumo em que se chamuscavam os hereges, e dos braseiros em que se iam aniquilando as consciências. Atente-se, a exemplo, nos tratos que sofreu Manuel Fernandes Vila Real, cristão-novo de pouco mais de quarenta anos, cuja ossada vai arder neste auto-de-fé do assinalado dia primeiro de Dezembro. Homem de viagens e culturas, andarilho do vasto mundo, defendeu a pátria nas praças marroquinas e foi provado servidor dos interesses do rei na corte francesa. A custas suas fez publicar as Décadas da Índia, dum tal Diogo do Couto. Mas iria ser um livro que escreveu, exaltando o vosso cardeal Richelieu, e mais as delações dum frade conterrâneo, invejoso e medíocre, que haviam de ditar-lhe a sentença de morte na Santa Inquisição, a qual foi assinada em Março no palácio do Rossio, ainda o caviloso réu se encontrava em Paris. O Vila Real regressou a Lisboa em fins de Abril, achou-se encarcerado em Outubro, e foi inquirido pela primeira vez cinco meses mais tarde. Ninguém lhe decifra que crime cometeu, nunca saberá de que vem acusado, pacientes que são os autos e eterno o tempo de Deus, como é sabido, a confissão espontânea há-de chegar um dia. O réu é que nunca virá a saber que testemunhas o acusam, nem pode constituir advogado que o defenda. Por três vezes o levam à polé, por três vezes lhe amarram os membros aos madeiros, por três vezes lhe espedaçam as juntas do corpo, que estalam ao romper-se. E, por sobre tudo, na cela medonha onde vai servindo de repasto a ratos e a piolhos, a baratas e a percevejos, introduzem-lhe um falso prisioneiro, espião subornado e delator. Com afagos e blandícias, tecerá o malsim em sua roda uma teia de pérfidos laços, na qual o desgraçado cairá um dia. 

Conquanto negativo e pertinaz, lá acabaria o Vila Real por confessar o que os santos frades tanto esperam ouvir, se não se desse o caso de haver sucumbido à quarta volta da polé. Sossegaram finalmente os atiçados ânimos. E, invocando o nome de Cristo, enfim se proclamou que o Vila Real foi herege e apóstata da recta fé católica, e lá por fora se bandeou com os inimigos da Santa Madre Igreja, e porque em vida tão simulado foi, e falso, e ficto, ser-lhe-ão os ossos descarnados e se queimarão na Ribeira.

Desdita maior é a dos restantes infortunados réus, que são três mulheres por bruxedo, mais dois cristãos-novos por convicta marranice, e mormente a deste João Fagundes Bento, feiticeiro de Alenquer, que a tempo não morreu e arderávivo. Dele consta que se entregou a pactos, e opera curas infernais pela mão do maligno, e pratica visões, e blasfema profecias messiânicas, e lança danações e maus-olhados que fazem cair raios sobre as casas, e são razão das pestes, e motivo das fomes, e levam à perdição as naus da Índia.

E agora afigure a senhora uma tal humana sociedade em que amigos atraiçoam conhecidos, em que pais delatam contra filhos, em que irmãos se denunciam entre si, em que os familiares do Santo Ofício se insinuam nos lares enquanto médicos, enquanto confessores, enquanto íntimos amigos, até captarem os sinais da heresia e os apresentarem a juízo. Ao fim de duzentos anos, diga-me o que sobra da alma deste povo, para quem a delação é indulgência e virtude de salvação.

Ao fazer a pergunta interrompeu-se Gabriel. Subiu um olhar lento pelas formas da mulher, assim abandonadas na poltrona, como quem aspira um fôlego febril, como quem, por fim, atenta nela. Sustém-lhe a mirada nos olhos, muito fixa, inclinado para ela o troco fatigado, ergue no ar as mãos ambas que o ajudam a ilustrar o cenário, e finalmente prossegue. (cont.)

domingo, 16 de fevereiro de 2025

As Aves 5-3

Diz o marquês que numerosos estrangeiros vêm apoquentando el-rei com suas memórias e propostas, visando enriquecer-se a si próprios e ao reino através da agricultura ou das manufacturas, ignorantes de que tais iniciativas e empreendimentos não convêm ao bem do estado,e menos ainda ao sossego e à ventura dos seus habitantes. Pois já que Deus fez do reino o dono de todo o ouro que se tira do Brasil, quase sem ter de cavar, e pois que esse ouro está distante, a mais de duzentas léguas para o interior, o único perigo à vista é a cobiça dos países estrangeiros, que, assaltando os nossos portos, poderiam vir a privar-nos do desfrute de tais tesouros. Nada disso acontecerá, porém, enquanto os ingleses dispuserem do país como vazadouro dos produtos das suas terras e indústrias, caso em que verterão o seu sangue até à derradeira gota, para nos defenderem.

Não têm outra escolha os ingleses, senão trabalhar e proteger-nos, e lá terão a paga assegurada, chega a dizer-se que o ouro do Brasil não alcança a pôr pé em terra portuguesa, que sai das nossas naus para entrar nos porões das armadas inglesas. E assim será, porém do mal o menos, antigamente eram as fragatas holandesas o baú do ouro das Índias, sem mais contrapartida. Pois nós damos aos ingleses maior lucro do que todas as outras nações juntas, sendo eles os únicos a embarcar os nossos vinhos do Douro e as nossas tenras vitelas do Barroso, para uns e outras nos falta a nós aguçado paladar.

Havemos, isso sim, de temer-nos de franceses, prosseguiu o marquês, de quem gostamos mais que dos ingleses, já que somos da mesma religião, e até lhes damos a casar as nossas filhas. Mas a protecção duns nos é mais útil do que a amizade doutros. Os franceses podem fazer-nos guerra sem ferir o seu comércio, e já o teriam feito se não se temessem, no que seriam prontamente ajudados por outras potências marítimas, zelosas das parcas moedas de ouro que os ingleses lhes deixam. E se estes não levam tudo é por mera artimanha política, já que poderiam fazê-lo, dispondo, como dispõem, abundantemente, de toda a qualidade de mercadorias que nos convêm.

Iguais são os motivos por que não desejamos dar-nos à exploração das minas de cobre do Algarve, e das minas de estanho e prata das partes setentrionais do reino, pois assim iríamos arruinar um dos ramos do comércio inglês. Vós sois suíço, vindes dum país que não tem interesse em contender connosco. Por isso vos falo com o coração nas mãos, e vos revelo o político segredo em que assenta a nossa ventura. Só com Roma não podemos manter altercações, já que Roma, embora precisada de nós, nem por isso deixaria de nos prejudicar. Demasiada bulha vem fazendo el-rei, sem falarmos agora do dispêndio de fazendas, só para que os núncios de Sua Santidade em Portugal tenham direito ao chapéu cardinalício. Para açular a inveja dos nossos vizinhos, bastam as bênçãos que Deus nos distribui no Brasil. Havemos, pois, de viver em paz com toda a cristandade, e governar-nos por tal forma que, se uma parte das nações conspirar em perder-nos, a outra se desunhará para nos defender. Deus nos valerá!

Mas não valeu. Nem às pretensões do senhor Merveilleux,  o qual, de abismado, não logrou maneira de contestar o marquês, nem às costumadas penúrias do povo do reino. Já que, à morte deste rei maquiavel agudíssimo, alguma ousada voz de embaixador ilustre, que muito viu e aprendeu nas cortes da Europa, escreverá um dia ao príncipe, herdeiro na sucessão, achará Vossa Alteza boas povoações como Covilhã, Fundão, Guarda, Lamego, Bragança e outras muitas quase desertas, e destruídas as suas manufacturas. Não sei de alguém que a tanto se atreva, porém a mim não me permite a idade final senão a liberdade e o destemor de vos dizer das causas desta dissolução. E vem a ser que, por mão da Inquisição, prendendo uns cristãos.novos e outros fazendo fugir para fora do reino com seus cabedais, por temerem ver-se confiscados sendo presos, forçoso foi que tais manufacturas decaíssem, porque tais chamados cristãos-novos as sustentavam. E a causa segunda vem a ser a permissão que Sua Majestade deu aos ingleses para meterem em Portugal os seus lanifícios, e fios de seda, e vidros, e ferros temperados, e couros curtidos, e toda a sorte de mercadoria.

Razão maior tinha o velho embaixador. (Cont.)

sábado, 15 de fevereiro de 2025

As Aves 5-2

Lá fora batem rijos os aços do comboio furando a noite, alguém lhe chamou idêntica, será verdade. Do que não há que duvidar, se ela própria o afirma, é chamar-se Geneviève esta mulher, e regressar a casa depois duma semana inteira de lições numa escola de sociologia, malquista ciência esta em Portugal, se todas, há séculos, o não são. E de novo lhe aflora ao rosto uma surpresa, agora sim, real e verdadeira, quando sabe serem portugueses estes viajantes de gesto polido, de semblante cortês um pouco melancólico, que falam bem francês e se dirigem a Paris. Dos portugueses, que há anos povoaram a França, tudo quanto lhe consta é serem eles muito sofridos nos trabalhos rudes e elas porteiras humílimas, quem é que falou um dia em rainhas destronadas, uns e outros vivendo em bidonvilles, e a salvarem às vezes da lixeira, a horas da madrugada, bonecos manetas e ursinhos de olhos vazados, com que os filhos hão-de brincar. De Portugal tem sabido alguma coisa pela imprensa, no último ano falou-se bastante duma revolução de flores com militares à mistura, ou duma estranha revolução de militares misturados com as flores. Ao dizer isto a mulher riu-se do jogo de palavras, e logo tropeçou no ar subitamente sério de Gabriel, que não apreciou o trocadilho, para socióloga andará a senhora pouco atenta às realidades do mundo, chama-se a isso na minha terra espeto de pau em casa de ferreiro. Geneviève acusou o toque, faiscou-lhe no olhar uma vibração imperceptível, um virar subtil de agulha, e foi então que deixou cair o pedido cortês, fala-me da tua revolução.

Gabriel apanhou do assento a revista que pusera de lado, alisou-lhe a palma lenta da mão sobre o joelho, ganhou alguns segundos na busca deste fio de novelo emaranhado, e começou a responder.

A minha revolução é uma história marcada há muitos anos num calendário antigo, minha cara senhora, a minha geração tinha-a inscrita no destino desde há séculos, como se os portugueses vivessem ainda no tempo das tragédias gregas, suspensos da mão de fados caprichosos. Nessa história muitos lances dariam para rir se tão trágicos não fossem, alguns de nós se habituaram há muito a olhá-los como farsa e viram costas, por lhes parecer este o modo mais fácil de os esquecer, quem vai agora averiguar razões. Ademais não se deslinda em meia dúzia de palavras, sem esforço e muito tempo, ainda bem que Paris fica longe, a uma noite inteira de caminho.

E, se por algum lado havemos de começar, dir-lhe-ei que existiu em Portugal, um dia, um rei magnânimo e beato, ninguém lhe veio a chamar rei-sol porque um francês qualquer se antecipou, o qual se divertia a assistir aos autos-de-fé dos padres na ribeira do Tejo, e gastou o melhor da vida a povoar o reino de bastardos, que semeou a esmo nos abrasados ventres da freiria incontável de Lisboa. Um dia chamou para lhe estudar o reino o senhor Merveilleux, naturalista suíço, reputado de fama e promissor de nome, pois quem não tem ciência paga por ela, toda a vida assim foi, mormente em se tratando do rei de Portugal que não tem precisão de olhar a despesas, assim se mantenham firmes os filões de oiro do sertão do Brasil.

Comprovam os achados botânicos da utilíssima genciana, curadora de pestes e abundosa nos altos lugares da província da Beira, que o suíço meteu pés aos caminhos e fez o que dele se esperava. Mas não ficou por aí. Homem atento e oportuno, vindo a saber das descargas de salitre que os mercadores traziam da Holanda, concebeu o plano de explorar os abundantes filões de Alcabideche. E apresentou os seus empenhos numa noite, ao serão com o velho marquês de Fronteira, vedor da fazenda, presidente do desembargo do paço, membro do conselho de estado e mordomo-mor da rainha austríaca. Havia de parecer adquirido o desembargo da empresa, melhor porta não havia onde bater. Porém, em vez do bom despacho, o que o homem ouviu foi apurada lição de ciência política, e a prova cabal, se falta cá fizesse, de como em Portugal é subtil e engenhosa a arte de governar. (Cont.)

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

As Aves 5-1

Fala-me da tua revolução, foram estas as palavras da mulher, ainda jovem, que entrou no comboio em Dax. Claro que não foi assim do pé para a mão que a imperativa explodiu, tudo na vida tem o seu germinar e o seu nascer, mormente em se tratando da apurada manobra destes comércios humanos. A mulher, que deambulava no cais, a protestar com a neblina e o frio, embarcou finalmente nesta carruagem nocturna, procurou um compartimento mais desafogado, e acabou a decidir-se por este ocupado somente por dois viajantes tranquilos, já era tempo de o serem. Um deles folheia uma revista, o outro vai olhando para lá da janela o que se podever da noite antiquíssima.

A sua entrada acordou naturais curiosidades, atraiu os olhares enquanto se desfazia da capa molhada, Gabriel levantou-se, tenteou um primeiro gesto na direcção do saco de viagem, a consequência foi tê-lo içado para a grade das bagagens. Foi aqui a vezda mulher abrir um sorriso de real ou fingida surpresa, tão raros são de ver, hoje em dia, estes requebros de viril gentileza. Mas antes dela fora Gaspar o primeiro a ficar surpreendido, não há dúvida que mudámos de mundo, onde é que uma mulher portuguesa viria agora sentar-se num compartimento só ocupado por dois estranhos neste comboio, demais a esta hora da noite e prevendo-se longa a viagem. A mulher agradeceu, num jeito contido embora manifesto, e nós, que vamos fazer desta aparente contradição que nos fica nos braços, não tem de quê, foi mais o gesto que o esforço, isto é o que sugere a ínfima vénia de Gabriel e uma poucas palavras em francês.

É bem verdade só existirmos nós por aquilo que fazemos, ou pela função que temos a desempenhar, não faltarão aqui os filósofos da ataraxia atestando o contrário, ou os poetas do fingimento, sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo... contente quase e bebedor tranquilo, A prová-lo, porém, vem Gabriel, que só agora ganhou direito a nome e a uma identidade, não fora este seu gesto cavalheiro e passava por nós sem deixar rasto, tarde demais íamos descobrir quanto ficávamos a perder. (Cont.)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

As Aves 4-7

Os viajantes chegaram à fronteira quando a noite caía. E só João interrompeu o mutismo geral para recolher os passaportes,  saiu devagar da viatura e dirigiu-se à casa dos guardas. O silêncio tornou-se mais espesso e constrangido e Gaspar não pôde evitar um sobressalto no peito, fruto só da pouca habituação a estes andamentos, um carabineiro veio espreitar os passageiros que vêm em turismo, dobrou-se para a minúscula janela, cotejou as caras com os retratos e mandou avançar.

Nada é mais contraditório do que os homens. Passámos a fronteira de França, e sendo isto motivo de particular alívio e geral distensão, a tristeza nos peitos é maior. Estes viajantes deixaram de ter razões de insegurança, ninguém aqui virá saber quem são e ao que vêm, indagar dos falsos passaportes, esmiuçar-lhes um dente irregular no selo branco. Há longos anos tem sido esta terra um local de refúgio de portugueses, dos cladestinos da fome, dos refractários duma comprida guerra, não vai deixar de sê-lo agora para os que doutra guerra escapam. E no entanto cresce a melancolia nestes olhos, passámos a vida a pensar que a liberdade é tudo e enganámo-nos, estamos finalmente soltos e preferíamos não estar, temos o mundo todo à mão e o nosso a ficar-nos para trás, cada vez mais distante.

João é que não esconde o seu contentamento. Procura um restaurante aprimorado, esmera a selecção das vitualhas, pede para nós um beaujolais. O jantar é um consolo para o corpo, a gentileza de França faz o resto. Leva-nos ao comboio, falamos de João que fortemente nos envolve nos braços compridos, antes de dobrar ao fundo a esquina da calçada, uma chuva angustiada cai.

Na vida é como no cinema, conclui Gaspar, preso ainda no relance final do carro branco, insistentemente chove quando alguém se vai embora para sempre. Nos filmes entendemos porquê, na vida não.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

As Aves 4-6

Franco assassino, este era o grito na noite solidária de Lisboa, ouvia-se em Madrid e era verdadeiro, isso bastava. As massas são assim, juntam-se e logo ficam cegas e surdas a vozes da razão, que o turbilhão da ira é uma paixão irrecusável, tão fundo como a raiz da barbárie de que nos erguemos um dia, se dela nos fomos libertando aos poucos, e assim em bando é simples qualquer heroicidade, temos ao mesmo tempo anonimato e luz de palco, mormente se uma oportuna voz nos estiver açulando, sem confessar que para um abismo nos empurra. Tal é o caso desta emissora católica, ocupada pelos trabalhadores em regime de autogestão, como era dito, porém sempre aoserviço da classe operária e do povo trabalhador, isto é o que anuncia o locutor enquanto vocifera dramáticos apelos à luta das massas oprimidas, enquanto incita o povo à revolução aqui e agora, amanhã será tarde, amanhã será tempo de mudar-me de campo e governar a vidinha, amanhã já ninguém lembrará felizmente o que aqui se passou.

Franco assassino, era o que gritava a maré humana que já não cabia na praça, de Espanha também chamada, não viremos a saber se é fé ou delírio o que estamultidão agita, idênticos são uma e outro. E, enquanto estes esgrimem pendões e bandeira vermelhas, já roucos e afónicos das repetidas palavras de ordem, já aqueles pularam o muro e franquearam os portões, de pouco valem os tiros que uns soldados barbudos apontam para o ar, com eles já nós aprendemos que não basta ao cão ladrar. Já subimos a trote a ampla escadaria, feita para os delicados pés dos bastardos do rei D.João, magnânimo como se vê pelo desafogo destes palácios, divina lhes seria a estirpe, mas revolução abençoada é a nossa, que tais portas nos franqueia. Já explodem no ar vidros estilhaçados, e das bocas da janelas voam madeiras partidas e retratos de grão-duques, quiçá espectros de bastardos que uma gritaria assim amedrontou, e cadeiras de espaldar, estantes e reposteiros, sofás de veludo, arquivos, cofres-fortes, tapetes iguais aos da Flandres antiga, e espadas do duque d'Alba, e obras de arte e lombadas de biblioteca, jarrões da Índia, vasos de plantas, documentos diplomáticos, relatórios e memorandos, se não estamos nós a desperdiçar ensejo de aceder aqui aos segredos de Castela, ou da própria terra basca, boa era a conjuntura e não teremos outra, e bonecas sevilhanas, e garrafas de Pedro Domecq. Já espezinhámos com volúpia o retrato do ditador, que fizémos arder neste auto-de-fé, já passaram por nós, sem os termos notado, diversos mariolas com pratas ocultas debaixo das casacas, tudo isto por junto nos custará, não tarda, o melhor de dois milhões, e pior que isso já há tropas espanholas afinando as miras na fronteira da Estremadura, onde estará sediado o quartel-general que lhes traçou a ordem de batalha é coisa que nos fica por saber. E, sem nos darmos conta, desta fumarada foi a revolução que saiu chamuscada, tanto que nós precisávamos dela em boa condição, e foi um pouco mais da nossa liberdade que estas labaredas dissiparam no ar, se Torquemada já cá não está, alguém lhe terá ficado com os novelos.

Pois quem vê caras não vê corações, há séculos que assim é e muito especialmente neste passo, os que são contra a revolução têm mil caras que mostram, e um só coração que escondem. Vejamos este jornal, que se chama O Proletário, parecia que tudo estava esclarecido e não está, que se formos nós além do frontispício e lhe perguntarmos o programa, o objectivo, a finalidade, a linha, a editorial ou outra, ficamos a sabê-lo anti-capitalista, anti-imperialista, anti-social-imperialista, e anti-revisionista, e mais que tudo disposto a combater o trotskismo, e o anarquismo, e o infantilismo de esquerda, e o ultra-esquerdismo, o revolucionarismo verbalista e o radicalismo pequeno-burguês. Assim tão contra tudo, fica-nos por saber se estará ele a favor de alguma coisa, não vimos aqui o fascismo citado. Porém, não cedendo nós à repentina e cínica descrença, afinal o descobrimos solidário com as teses do congresso dos comunistas chineses da revolução permanente, um dia viremos a saber o que isso foi, e também com as teses do congresso do partido do trabalho da Albânia, um país adormecido à beira do Adriático, para que não souber.

Albânia é também o cognome por que se está dando a conhecer o liceu Pedro Nunes, em Lisboa, mais que todos a escola da boa gente da Estrela, e dos filhos-família da Lapa, e dos meninos da avenida Infante Santo, chama-se Albânia e já levou à rendição dum directório militar, que deste modo evitou baixas maiores, é este um fenómeno exemplar e nunca visto, sem querer voltámos à guerra das bolanhas da Guiné, as armas e os caranguejos é que não são os mesmos. Em vão perguntamos nós o que ligará uma coisa à outra, a Albânia a esta gente que sempre nadou em privilégios, e esta gente à mísera Albânia, recôndito lugar que ninguém sabe onde fica no mapa. Em vão fazemos nós perguntas que nos ficam  no ar, pairando no espírito perplexo, tanto tempo levamos a perceber e de tão pouco dispomos. E um dia vem Gustarino lá de longe, escapando do ensanguentado Chile, oxalá venha ele a tempo de nos mostrar o que a sua terra tem vivido, se nos servirá de exemplo, o povo não imagina do que são capazes as classes poderosas, quando se trata de manter ou restaurar privilégios e mando. (Cont.)

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

As Aves 4-5

Finalmente achou João que era tempo de acalmar o estômago, porventura enfadado desta solidão em que tem vindo, os viajantes acordaram quando o carro parou em Alsasua. Um após outro se apearam, açoitou-lhes o rosto o  aguilhão da aragem fria a descer da montanha, e o que fazem é o que deles se espera, esticam os músculos, afagam uma articulação dorida, lançam em volta um olhar pesquisador. Ali perto, escoltado por um pelotão de bétulas hirtas, desce a encosta um ribeiro zabgado,, a espumar entre margens de pedra. E pouco se demoram os viajantes no estanco onde procuraram restauro, três velhotes sentados a uma mesa não chegam a interromper o pausado concílio, abrigados nas gorras bascas, dava jeito aqui sabermos nós interpretar.lhes a exótica liguagem, acaso ficávamos a conhecer algum segredo escondido.

Esta atmosfera é diferente. E se um país é também uma cor da paisagem, ou um certo recorte da linha do céu no horizonte, então o país basco não é terra de Espanha, porventura era este o segredo dos três conversadores que ali atrás deixámos. Fosse ou não fosse, é isso o que pensa Gaspar, à medida que a estrada vai serpenteando entre encostas de abetos, à medida que ficam para trás povoados acolhidos ao regaço dos montes, à medida que desfilam chaminés escuras assinalando fábricas. Falava-se muito na Lisboa da revolução, demais se terá falado, que os ânimos andavam levantados e tudo era motivo de análise e disputa, modo de recuperar o tempo perdido em cinquenta anos de silêncio, e os atentados sangrentos traziam a ETA à discussão, alguns mais exaltados a tomariam por modelo, cativos da sua violência radical. A Gaspar sempre escassearam as certezas, de alguém ouviu um dia a frase, quiçá definitiva, muito mal terá feito Madrid à terra basca, para que ela lhe responda deste modo.

Em qualquer caso, que o país basco não era terra espanhola, era o que pretendia Otaegui mais os companheiros. E por este simples ou outro mais pesado crime, todos foram condenados ao garrote num tribunal de Madrid, desmesurado e arrepiante modo de matar e morrer, que só ao generalíssimo cabia comutar. Foi um alvoroço na noite inteira de Lisboa, e esta é uma branda palavra que erradamente usámos, o que ali se passou foi uma bebedeira de vã destruição, foi uma orgia de violência estéril que nenhum milagre podia operar, todos eles acabaram fuzilados ao amanhecer, em Madrid, em Barcelona, em Burgos, como Garcia Lorca o foi em Granada, como levas de milhares de rojos o tinham sido em Badajoz, que tiranos são touroa bravios, uma vez corridos aprendem a sombra do toureiro e avezam-se a buscá-la, disto tem este regime vasta escola e alongado tirocínio. (Cont.)

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

As Aves 4-4

O viajante tem fraco entendimento destas simbologias, e das razões que lhes deram nascimento.Observa de relance a dúzia de finas agulhas rendilhadas, que se espetam no céu e lhe causam vertigens, e irrompem dum confuso jardim de ramagens de pedra, dum turbilhão de linhas em que os olhos se perdem em arabescos de calcário, qual teia duma aranha atónita, onde ficaram eternamente imóveis assembleias de apóstolos, concílios de beatos, comícios de sisudos profetas, estátuas de evangelistas circunspectos, bustos de princesas coroadas, academias de arcanjos, virgens a esmagar dragões zangados, béstias mitológicas, sátiros infernais, grifos, tritões, centauros, sibilas, polifemos, elfos e olharapos, copistas presos às bancas, bodes de costas voltadas, sereias de cauda dupla, touros de cornos em lira, gnomos sem cabeça, pégasos alados, águias bicéfalas, demónios a ferver proscritos nus em caldeirões, basisliscos, lobisomens, gáugulas, brasões, e sobre este portal dão-se as mãos um sujeito de casula e mitra e outro de elmo e couraça, e meio escondida aqui neste recanto ergue uma taberneira um pichorrão de vinho em cada mão, e no alto desta coluna abriga-se ao capitel uma abadessa cujos peitos inflados dois faunos abocanham, não vale a pena procurarmos mais, vivas aqui só as gralhas a ralhar entre si nos pináculos, e quem nos espia rindo é o diabo em pessoa, atrás daquele arcobotante.

Gaspar conclui rapidamente o circuito dos terraços e das platibandas, das cornijas e das carrancas, um dia saberá apreciar, um dia aprenderá a entender melhor estes lugares e estes mistérios da vida. Hoje tem apenas a vaga intuição de que ninguém constrói uma fábrica assim, senão para afirmar o poder que tem. Todas as divindades lhe são por igual indiferentes. Mas, a haver um criador dos homens e do mundo, por certo o seu único e profanado templo era o corpo do alvanil que um dia subiu a esta torre para acomodar-lhe a pedra de fecho, e com ela se despenhou, no terreiro desta praça de Santa Maria.

Mal deixam Burgos para trás, caem os viajantes em prolongado sono, não falamos, claro, de João, que não pode descartar-se de papel mais activo e vigilante. A próxima paragem é para lá de Vitória, no fim jantaremos na Baiona francesa e despedimo-nos, isto foi o que ele deixou dito logo à saída, antes de uma chuva miúda e quezilenta vir puxar o brilho à fita negra da estrada, cerrar as cortinas da paisagem e reduzir ainda mais o espaço de manobra aos viajantes.

Assim adormecido, Gaspar fica liberto de cogitações sobre floreados de pedra, e o ofendido corpo do alvanil há muito que regressou ao pó, nem em pesadelos viria agora recuperer alento. E só acordará, falamos de Gaspar, lá muito para diante, quando a isso o forçarem os incómodos da orografia, e os montes do país basco vierem a quebrar a suave monotonia desta rota.

E é pena, que então já será tarde. Cada um sabe de si, verdade amiúde publicada e nem sempre pertinente, sobretudo se tivermos na conta devida quanto pode ajudar-nos, no avaliar das dores próprias, o cotejo com alheios males maiores. Este viajante não nos tem escondido desconfortos e incertezas  ao longo da viagem, às vezes desalento, quando não mau humor. Para seu governo e edificação, convir-lhe-ia atentar nestes caminhos do mundo, trilhados que têm sido por tanta gente em pior condição e mais lastimoso estado. Mas isso são histórias a que Gaspar não assistiu, nem menos adormecido lhe serviriam de consolo. (Cont.)