quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

As Aves 4-6

Franco assassino, este era o grito na noite solidária de Lisboa, ouvia-se em Madrid e era verdadeiro, isso bastava. As massas são assim, juntam-se e logo ficam cegas e surdas a vozes da razão, que o turbilhão da ira é uma paixão irrecusável, tão fundo como a raiz da barbárie de que nos erguemos um dia, se dela nos fomos libertando aos poucos, e assim em bando é simples qualquer heroicidade, temos ao mesmo tempo anonimato e luz de palco, mormente se uma oportuna voz nos estiver açulando, sem confessar que para um abismo nos empurra. Tal é o caso desta emissora católica, ocupada pelos trabalhadores em regime de autogestão, como era dito, porém sempre aoserviço da classe operária e do povo trabalhador, isto é o que anuncia o locutor enquanto vocifera dramáticos apelos à luta das massas oprimidas, enquanto incita o povo à revolução aqui e agora, amanhã será tarde, amanhã será tempo de mudar-me de campo e governar a vidinha, amanhã já ninguém lembrará felizmente o que aqui se passou.

Franco assassino, era o que gritava a maré humana que já não cabia na praça, de Espanha também chamada, não viremos a saber se é fé ou delírio o que estamultidão agita, idênticos são uma e outro. E, enquanto estes esgrimem pendões e bandeira vermelhas, já roucos e afónicos das repetidas palavras de ordem, já aqueles pularam o muro e franquearam os portões, de pouco valem os tiros que uns soldados barbudos apontam para o ar, com eles já nós aprendemos que não basta ao cão ladrar. Já subimos a trote a ampla escadaria, feita para os delicados pés dos bastardos do rei D.João, magnânimo como se vê pelo desafogo destes palácios, divina lhes seria a estirpe, mas revolução abençoada é a nossa, que tais portas nos franqueia. Já explodem no ar vidros estilhaçados, e das bocas da janelas voam madeiras partidas e retratos de grão-duques, quiçá espectros de bastardos que uma gritaria assim amedrontou, e cadeiras de espaldar, estantes e reposteiros, sofás de veludo, arquivos, cofres-fortes, tapetes iguais aos da Flandres antiga, e espadas do duque d'Alba, e obras de arte e lombadas de biblioteca, jarrões da Índia, vasos de plantas, documentos diplomáticos, relatórios e memorandos, se não estamos nós a desperdiçar ensejo de aceder aqui aos segredos de Castela, ou da própria terra basca, boa era a conjuntura e não teremos outra, e bonecas sevilhanas, e garrafas de Pedro Domecq. Já espezinhámos com volúpia o retrato do ditador, que fizémos arder neste auto-de-fé, já passaram por nós, sem os termos notado, diversos mariolas com pratas ocultas debaixo das casacas, tudo isto por junto nos custará, não tarda, o melhor de dois milhões, e pior que isso já há tropas espanholas afinando as miras na fronteira da Estremadura, onde estará sediado o quartel-general que lhes traçou a ordem de batalha é coisa que nos fica por saber. E, sem nos darmos conta, desta fumarada foi a revolução que saiu chamuscada, tanto que nós precisávamos dela em boa condição, e foi um pouco mais da nossa liberdade que estas labaredas dissiparam no ar, se Torquemada já cá não está, alguém lhe terá ficado com os novelos.

Pois quem vê caras não vê corações, há séculos que assim é e muito especialmente neste passo, os que são contra a revolução têm mil caras que mostram, e um só coração que escondem. Vejamos este jornal, que se chama O Proletário, parecia que tudo estava esclarecido e não está, que se formos nós além do frontispício e lhe perguntarmos o programa, o objectivo, a finalidade, a linha, a editorial ou outra, ficamos a sabê-lo anti-capitalista, anti-imperialista, anti-social-imperialista, e anti-revisionista, e mais que tudo disposto a combater o trotskismo, e o anarquismo, e o infantilismo de esquerda, e o ultra-esquerdismo, o revolucionarismo verbalista e o radicalismo pequeno-burguês. Assim tão contra tudo, fica-nos por saber se estará ele a favor de alguma coisa, não vimos aqui o fascismo citado. Porém, não cedendo nós à repentina e cínica descrença, afinal o descobrimos solidário com as teses do congresso dos comunistas chineses da revolução permanente, um dia viremos a saber o que isso foi, e também com as teses do congresso do partido do trabalho da Albânia, um país adormecido à beira do Adriático, para que não souber.

Albânia é também o cognome por que se está dando a conhecer o liceu Pedro Nunes, em Lisboa, mais que todos a escola da boa gente da Estrela, e dos filhos-família da Lapa, e dos meninos da avenida Infante Santo, chama-se Albânia e já levou à rendição dum directório militar, que deste modo evitou baixas maiores, é este um fenómeno exemplar e nunca visto, sem querer voltámos à guerra das bolanhas da Guiné, as armas e os caranguejos é que não são os mesmos. Em vão perguntamos nós o que ligará uma coisa à outra, a Albânia a esta gente que sempre nadou em privilégios, e esta gente à mísera Albânia, recôndito lugar que ninguém sabe onde fica no mapa. Em vão fazemos nós perguntas que nos ficam  no ar, pairando no espírito perplexo, tanto tempo levamos a perceber e de tão pouco dispomos. E um dia vem Gustarino lá de longe, escapando do ensanguentado Chile, oxalá venha ele a tempo de nos mostrar o que a sua terra tem vivido, se nos servirá de exemplo, o povo não imagina do que são capazes as classes poderosas, quando se trata de manter ou restaurar privilégios e mando. (Cont.)