Por essa razão íamos nós perdendo a vez de olhar Torquemada de perto. Passava-nos o burgo ali à esquerda, amalhado ao pé duma colina vasta, rebanho assustado, mal nos davam os olhos nele. De ruim ninho sai o bom passarinho, a ser verdade o que o povo diz. Mas aqui devemos nós lembrar a inversa, que é já se terem visto passarões levantar ruto de ninhos mais benignos, se será este o caso. Sabe Gaspar, por sua nem sempre agradável experiência, que os filhos serão muito do que forem as terras-mães donde saíram. O que não sabe é se as terras acabam também por ser alguma coisa do que os seus filhos foram. Nem ele nem nós. A verdade é que tudo neste povoado tem a cor das cinzas que as grandes fogueiras sempre deixam, quando esfriam. Com justiça ou sem ela, e enquanto aos homens não falecer a memória de vez, de nada valerá a Torquemada alegar-se inocente, disfarçar-se na raiz deste monte e dizer que nunca lhe cheirou a carne queimada, ou que não ouviu o clamor das vítimas do potro e da polé. Os homens de memória passarão aqui. E, reparando na tabuleta a indicar o topónimo, alguns hão-de ver nela, erguido e vigilante, o facho do fanatismo a incendiar uma pira, acaso este arrepio foi a memória antiga duma língua de fogo revolto, a lamber um ventre mais trémulo.
E ainda bem que chegámos a Burgos, onde o que o ventre nos está pedindo é outro e mais consolador abalo, o reconforto do pequeno-almoço. Gaspar nunca andou por aqui, não conhece a cidade, a bem dizer quase todo o vasto mundo lhe é desconhecido, e o que mais calcorreou não vem nos mapas, muito lhe apraz esta paragem à beira das verduras do rio que a atravessa. A fronteira que passaram a salto já está longe. E, não sendo esta Espanha lugar que se recomende a clandestinos, mormente a estes que trazem às costas a sua conta de marcadas heresias, não estranhemos nós que a distância a que já estão lhes vá restituindo à-vontade e leveza de gestos, mesmo se Torquemada ficou ali atrás de atalaia. Gaspar viu as torres da catedral a investirem contra o céu cinzento, ousou pedir um quarto de hora e fazer de turista apressado, João só lembrou as premências do tempo. (Cont.)