quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

As Aves 4-3

Por essa razão íamos nós perdendo a vez de olhar Torquemada de perto. Passava-nos o burgo ali à esquerda, amalhado ao pé duma colina vasta,  rebanho assustado, mal nos davam os olhos nele. De ruim ninho sai o bom passarinho, a ser verdade o que o povo diz. Mas aqui devemos nós lembrar a inversa, que é já se terem visto passarões levantar ruto de ninhos mais benignos, se será este o caso. Sabe Gaspar, por sua nem sempre agradável experiência, que os filhos serão muito do que forem as terras-mães donde saíram. O que não sabe é se as terras acabam também por ser alguma coisa do que os seus filhos foram. Nem ele nem nós. A verdade é que tudo neste povoado tem a cor das cinzas que as grandes fogueiras sempre deixam, quando esfriam. Com justiça ou sem ela, e enquanto aos homens não falecer a memória de vez, de nada valerá a Torquemada alegar-se inocente, disfarçar-se na raiz deste monte e dizer que nunca lhe cheirou a carne queimada, ou que não ouviu o clamor das vítimas do potro e da polé. Os homens de memória passarão aqui. E, reparando na tabuleta a indicar o topónimo, alguns hão-de ver nela, erguido e vigilante, o facho do fanatismo a incendiar uma pira, acaso este arrepio foi a memória antiga duma língua de fogo revolto, a lamber um ventre mais trémulo.

E ainda bem que chegámos a Burgos, onde o que o ventre nos está pedindo é outro e mais consolador abalo, o reconforto do pequeno-almoço. Gaspar nunca andou por aqui, não conhece a cidade, a bem dizer quase todo o vasto mundo lhe é desconhecido, e o que mais calcorreou não vem nos mapas, muito lhe apraz esta paragem à beira das verduras do rio que a atravessa. A fronteira que passaram a salto já está longe. E, não sendo esta Espanha lugar que se recomende a clandestinos, mormente a estes que trazem às costas a sua conta de marcadas heresias, não estranhemos nós que a distância a que já estão lhes vá restituindo à-vontade e leveza de gestos, mesmo se Torquemada ficou ali atrás de atalaia. Gaspar viu as torres da catedral a investirem contra o céu cinzento, ousou pedir um quarto de hora e fazer de turista apressado, João só lembrou as premências do tempo. (Cont.)

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

As Aves 4-2

Há uns ameaços de chuva na paisagem, este céu está fusco e pardacento, dava jeito aqui um sol que viesse forçar um sorriso a estes viajantes, tão sorumbáticos se mostram, basta às vezes um pequeno nada para que o mundo deixe de ser assim a preto e branco. O trânsito é escasso a esta hora matutina, e o andamento o conveniente aos mesquinhos cavalos que nos puxam, assim não venha a chuva exigir-nos cuidados acrescidos e perdas de rendimento na empreitada, ainda bem que não estamos nos meses de verão, há muito já se vai dizendo que esta é a estrada da morte dos portugueses. Passam por aqui aos milhares, e não há fiferença entre eles e as aves de arribação, que umas e outras se deslocam por idêntica bússola, encontrar um recanto assinalado na dobra duma paisagem, escolher nele uma pedra para recostar a cabeça, plantar aí as raízes da alma. É este o seu carreiro de formigas quando chega o verão, em filas que vão até ao horizonte, queixam-se as viaturas por serem às vezes velhas em demasia, e rangem ao excessivo peso, e aquecem demais ao masculino sol ibérico, e mais se queixam as crianças da sede e da falta de espaço, e do ar azedo que ferve, saturado de humores, as mulheres iam agora lamentar-se do destino que tanto demora a chegar mas falece-lhes a oportunidade, sempre a última na ordem das prioridades, que agora é a vez de se queixar este homem condutor, do suor e do cansaço, há oitocentos quilómetros que não pára, e por isso lhe descaíram as pálpebras, ou ele as deixou velar, o carro foi perdendo a direcção adequada, tão lentamente que ninguém deu por isso, tão imperceptivelmente que nenhum protesto se ouviu, entrou no desnível da berma e a roda sobrecarregada não conseguiu voltar à via, não era duma trabalheira assim que estavam precisadas estas ambulâncias da guarda civil, a galopar aos gritos na paisagem.

Mas a prometida chuva não passou dum aceno, e este não é o tempo das vacanças e seus afogadilhos. A estrada é um tapete que à nossa frente se abre, riscando ao meio a planura, e por ela deixa Gaspar discorrer a vista melancólica, esta meseta castelhana é uma terra vencida, geologicamente exausta e exaurida. O tempo suspendeu um dia as convulsões de milhões de anos que nala se adivinham e deixou este mar chão domesticado, onde a mesma ondulação estática se reproduz indefinidamente, e onde nada nos surpreende o olhar. Ficou esta paisagem torturada, que estranhas elevações interrompem a espaços, é um cenário de papel donde as próprias árvores desertaram. A custo se arrancam do chão os povoados que raramente surgem, e tudo tem a mesma cor pardacenta da terra, os telhados, os muros das casas, as janelas.(Cont.)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

As Aves 4-1

João bate á porta do quarto num gesto impaciente, é tempo de partir e Gaspar está ferrado ainda no sono da primeira manhã. Será este o melhor remedeio quando a noite assim se tresmalhou, consumida em ânsias e suores, mas isso não o sabe João, nem são contas do seu rosário. O que ele temé que atravessar a Espanha com estes dois viajantes e pô-los a recato, e ainda falta Burgos, e Miranda que vem tão longe, e mais ainda Vitória, e Tolosa, e Irun lá para o fim da tarde, que estes dias são pequenos, bem fizémos nós em esticar assim a etapa de ontem. O carro minúsculo respondeu de imediato ao aceno da chave, soube-lhe bem o repouso e não se queixa de pesadelos nocturnos, será porque nunca foi à guerra.

No meio da geral modorra matutina Gaspar vai triste, à medida que abandonam a cidade. Não tem aqui nada de seu e no entanto olha as ruas e as fachadas, olha este caminhante e aquela árvore como quem se despede. E do fundo da memória sai-lhe uma lembrança antiga, de quando ia apanhar a camioneta para o seminário, há quanto tempo isso vai e a emoção de hoje é a mesma, passamos a vida a repetir-nos. A velha Dodge amarela, antiga como a primeira das irmãs que saiu das forjas de Detroit, o inchado nariz a roncar estrondos jurássicos e o tejadilho a abarrotar de fardos e bagagens, lá ia bordejando prados e colinas pela estrada do Côa, e a Gaspar ficavam-lhe os olhos presos nas paredes das hortas, nas giestas floridas se era Abril, nos castanheiros nus, ficava-lhe uma dor agarrada às imagens da mãe girando na cozinha, às picardias dos irmãos, às cavalgadas dos cães que lhe vinham sempre à mão, quem não sabe o que isto é poderá ver, por estas lágrimas, quanto custa perder a liberdade. E agora parece que finalmente o rodar do tempo lhe vai abrindo os olhos para a realidade que está vivendo, lhe vai despertando a consciência para as rupturas a que deixou a alma exposta, e que apenas aguardam o momento de começar a sangrar. Sente o peso de quanto deixou para trás, bom ou mau é o que lhe fazia a rotineira e sossegada vida. São isto ingenuidades a que teremos que atender, o mundo seria outro se todos tivéssemos têmpera de heróis, o que será ele isso, ainda não é desta vez que lançaremos nós a primeira pedra. (Cont.)