quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A cinturinha de vespa e o B52

Aquele tempo era bem pior que o de hoje, que já de si mais parece um acto trágico. Lembro-me dele só para me compensar.
A pista era uma bisarma, no cimo do planalto. Cabia nela um B52. Justamente o capitão já nos deixara dito que, no ano que findara, toda a esquadra fizera uso das capacidades de um B52 e meio. A malta, que só usava umas passarolas ligeiras em pistas de terra do mato, e um Texan vindo da África do Sul que transportava um armamento ridículo, não chegou a comover-se, à excepção do próprio capitão, que esse vibrava em falsete.
Na base aérea havia um alferes de artilharia, nunca ficou explicado que fazia ele ali. Era melómano e culto e miliciano, e isso explicará tudo.
Um dia trouxe a notícia de que a Olga Prats e o Bruno Pizzamillo davam um recital no cineteatro de Carmona, a capital do Uíge. E eu concluí que o melhor meio de transporte, para os 50 Kms de distância, era o Auster. Muito melhor do que os Land Rover de volante à direita que os sul-africanos boers tinham oferecido à esquadra. O capitão acedeu. E lá fui eu, à espera do recital.
Como cheguei cedo, passei por casa da cinturinha de vespa, uma donzela chorosa que saíra das mãos dum alferes do arre-macho que acabara a comissão. A mãe dela não interferiu, apenas se manteve atenta. E quando eu me dei conta estava a chegar o crepúsculo. Naquelas terras, o crepúsculo é um intermezzo.
Saí para a rua, chamei um táxi e corri ao aeroporto. Entrei na passarola sem qualquer inspecção prévia. Alinhei na pista, descolei sobre a roda esquerda e comecei a subir na escuridão. A dada altura acendi um isqueiro para ver a pressão do óleo. E fui subindo até me parecer altura de nivelar.
Rumei a sul e fui andando, guiado apenas pelo cantar do motor. Depressa ouvi as chamadas da torre, que queria saber de mim. Tranquilizei o rapaz, dei-lhe um tempo estimado de chegada, até que vi ao longe uma pista balizada por candeeiros de petróleo.
A aterragem foi um sossego, parecia mesmo um B52. O mecânico arrumou-me na placa e eu dirigi-me ao comando da esquadra.
O capitão lá estava à minha espera atrás da secretária, e eu nunca me senti como o fiel fiador daquele rei que não pagou as onças de ouro ao papa.
O capitão cedeu à corda que eu trazia ao pescoço e mandou-me dormir. E foi assim que perdi o recital da Olga Prats por troca duma cinturinha de vespa. E na manhã seguinte foi o companheiro de barraca que me acordou.