terça-feira, 19 de setembro de 2017

O Malhadinhas

"Provecto dos anos, uma tarde ergueu-se do borralho e saiu a porta para fora, amparado ao porretinho de marmeleiro. Andava há dias a chocar a morte e deixaram-no ir, que era relapso a prevenções e cuidados. Sentou-se no poial de pedra, que servia de amassadoiro do linho. Com mão incerta aconchegou as abas da capucha contra os joelhos regélidos. Nevara, codejara, e as árvores, com o sincelo, estalavam ao peso das candeias. António Malhadinhas fechou os olhos à semelhança do romeiro que torna de Santiago, farto de correr léguas, ver terras, passar pontes e vaus, enxotar cães que arremetem ameaçadores de currais e quintãs, e adormece a sonhar com o céu num recosto do caminho. Vergou brandamente a cabeça para o peito, ao tempo que os dedos lhe pendiam para o chão como vagens maduras. E - o Justo Juiz lhe perdoe as facadas, que as não deu em nenhum santo - nem se sentiu a atravessar as alpodras duma margem para a outra do negro rio."
Lisboa, 1922