domingo, 17 de setembro de 2017

Jorge de Sena, Camões e outros exilados 3

 
"(...) E isto para não falarmos de crimes literários e socio-morais de mais largo alcance, de que Camões era vítima nas escolas, parecendo até que nós éramos as vítimas dele. Porque, para além de encher-se a boca com a Fé e o Império, o poeta não servia para mais nada senão para exercícios de gramática estúpida; o que, tudo junto, chega para gerações lhe terem ganho alguma raiva e perdido o gosto de o ler.
E há mais e pior: quando no liceu líamos Os Lusíadas, éramos proibidos de ler as passagens consideradas mais chocantes pela pudicícia hipócrita desta nossa sociedade de sujeitos felizmente desavergonhados, que vivem a perseguir ou reprimir os pecados alheios. (...)
Já se disse que as personagens mais vivas e activas de Os Lusíadas são os deuses pagãos e não as criaturas históricas, mais pálidas e incaracterísticas do que elas. (...) Estes deuses, na dialética camoniana, sem a qual Camões se não entende, são ao mesmo tempo as emanações do princípio divino que desce à terra , e são a nossa humanidade ascendida e divinizada. (...)
Porque para o amor Camões arranja sempre uma desculpa, um louvor, ou a suprema divindade, porque esse amor é para ele a realidade última, e a realidade sempre presente. Sem amor não há heróis, nem há homens dignos desse nome. (...)
Ao escolher para assunto central da sua epopeia a viagem de Vasco da Gama, ele sabia perfeitamente que escolhia um momento decisivo da história universal; o encontro, para todo o sempre, para o bem e para o mal, da Europa com a Ásia, passando-se pela África.(...)
Tudo existe na sua obra: o orgulho e a indignação, a tristeza e a alegria prodigiosa, a amargura e o gosto de brincar, o desejo de ser-se um puro espírito de tudo isento, e a sensualidade mais desbragada. Leiam-no e amem-no."
(1977)