sábado, 24 de dezembro de 2016

Pérola em concha

(Primeira casca)

O meu semelhante.
«Eram já cinco e cinco quando cheguei à entrada do prédio e abri a porta da rua. Foi quando ouvi a campainha de um elevador tocar. Está alguém lá fechado, pensei. Mas tinha muita pressa de chegar ao metro. Se não apanhasse o barco das cinco e quarenta e cinco no Cais do Sodré só tinha outro passado meia hora.
E depois do barco ainda tenho sempre de apanhar outro autocarro. Em chegando a casa, é acabar o jantar, que já ficou meio pronto, pra isso me levanto às cinco e meia, ver se os rapazes fizeram os deveres da escola, pôr roupa a lavar e ouvi-los bulhar um com o outro, até eu me zangar com eles. 
Eu, se pudesse, bem me deitava logo que chegasse, nem se me dava de comer ou não. Mas aqueles mafarricos nunca têm pressa de ir para a cama e nuca estão cansados, enquanto eu ando estafada e chego à noite a cair.
Bem, isto só para dizer que nem pouco nem muito me ralei com quem estava no elevador. Se lá estava preso, lá ficasse. Ne4m que fosse por conta de quem devia estar na prisão e não estava.
Estes do condomínio bem podem comprar elevadores em condições e pagar a quem lhes vá acudir, se for caso disso. E então a modos que decidi nem pensar mais e fui à vida, que a morte é certa.
Mas já ia no barco e ainda estava a magicar em quem lá estava dentro, e no que se havia de afligir. E já estava na cama e pensei na agonia que era se demorassem muito a acudir-lhe.
Não gosto de elevadores nem do metro, andar debaixo da terra dá-me um soco no estômago como se estivesse dentro dum caixão. E se aquilo nos cai na cabeça e a gente fica debaixo de um montão de entulho?
Andar cá por cima sempre é diferente, pelo menos tem ar. Se bem que se houver um terramoto nem Santo António nos salva. As primeiras coisas a cair são de certeza os túneis, e a cidade está cheia deles, não há praça que não esteja furada que nem um caminho de toupeiras. Também não gosto das pontes, aquilo balança e assobia com o vento, parece que anda por lá o diabo à solta.
Até podia apanhar o comboio em vez do barco, mas passar de comboio na ponte dá-me um arrepio. O barco sempre acho mais seguro.
Bem, isto para dizer que me deitei na cama e tão derreada estava que acabei por cair no sono, mas aí às duas da manhã acordei. Assim, sem mais nem menos. E a primeira coisa que pensei foi em quem ficou a gritar no elevador.
Ora, não lhe havia de acontecer nada. É verdade que o elevador se fecha que nem uma caixa de metal, mas aquilo deve ter algum buraco por onde venha o ar. Ou deve ter ar condicionado, aquela gente tem ar condicionado em tudo quanto é canto. Se sentisse falta de ar devia ser só impressão.
E o que queriam que eu fizesse? Que fosse chamar o segurança? Sabia lá por onde andava, na porta de saída não estava, podia andar na ronda em qualquer garagem ou corredor, vá-se lá saber qual.
Não tenho nadinha a ver com isso; se o elevador avariou, problema deles. Eu lavo as escadas, é para isso que me pagam, e só ando de elevador para as lavar. Subo até ao último piso e começo a lavar de cima para baixo, que é como deve ser. Quando chego cá abaixo, já lavei e desci tudo quanto é degrau e patamar e doem-me os braços e as pernas, e até as mãos. de tanto rolar nelas o cabo da esfregona.
Eles sabem lá o que é trabalho. Andam elevador abaixo e elevador acima para sair a passear o cão, ir ao cabeleireiro, ao ginásio e às compras nas lojas finas, e nunca pensaram em quem lava escadas. Nem devem saber quanto me pagam, são despesas do condomínio. Nunca é com eles que falo, é com os encarregados, que também não fazem nada, a não ser mandar. Ora isso também eu fazia, e bem melhor do que eles. Ó Fulana, lave aí as escadas. É tanto ao fim do mês. Olha que difícil. Lavassem-nas eles, pra ver como é. Até porque não tenho só aquele prédio do condomínio, tenho mais, e limpo os corredores e as garagens, aquilo é um desperdício de vazio, no espaço que eles não usam vivia uma pancada de famílias.
Em minha casa nem lugar há para outra mesa, as crianças fazem os deveres na mesa da cozinha. E ainda tive sorte de o vizinho Arnaldo me fechar a marquise, sempre tenho onde pôr umas mercearias, e deixo debaixo da cama as malas com roupa de Verão ou de Inverno, a que não se usa no tempo em que se está. Antes da marquise entrava muito frio por baixo da janela, assim ficou bem melhor; a marquise tem pouco espaço mas sempre é mais algum, e tudo o que possa ajudar eu agarro logo, com as duas mãos. (...)»