sábado, 17 de maio de 2008

Morte matada

A noite desta história era assim, molhada e lenta como a noite que hoje aí está. Rumores só os da água a cair, persistente. E por sobre eles, distante e sem origem, como se viesse do coração fundo da terra, o troar do ribeiro que da serra vem e por entre fragas se despenha, apertado entre silvados, algum loureiro velho amedrontado e paredes de hortas.
A aldeia encosta-se ao monte, a nascente voltada. Plantada aqui por um saber antigo, logo nela dão os primeiros afagos do calor, mal o sol se levanta dos lados de Castela. Porém em vão se enrolam nas mantas os homens, e nas palhas os gados, quando não todos juntos, para aquecer os corpos. É que nenhum sol é bastante para adoçar o rigor destemperado destes invernos.
A deslado, raia natural, a fronteira do ribeiro a descer a encosta. Acanhado entre paredes ou fragas naturais, é no verão uma doce veia que rega hortas. Mas nos invernos ganha corpo e voz, a espumar no orgulho das pedras, despenhando-se cascata abaixo, esfacelando bichos incautos.
Eu tinha nessa altura, lá por cima do povo, um improvisado barracão de cimento onde criava frangos. E porque os frios eram persistentes, e os bichos miúdos de penugem escassa, dava-me eu a frequentes cuidados de ir e vir, a atiçar-lhes algum calor nos queimadores. Já era tarde, nessa noite, quando a caminho passei pela taberna, ainda me lembro como se fosse hoje. Entre conversas de façanhas e áfricas, e cães de caça de venta rachada, que desenterravam qualquer porco bravo das profundas dos brejos, ouvi claramente o Zé dizer, ao Manholas mais novo, é hoje que lá vou a casa e tendes que me pagar. Questões atrasadas de gados e pastagens, e de ervas arrendadas, julguei eu entender.
Fui à minha vida, cuidei dos animais, e era uma da manhã quando desci a casa, aconchegando no sovaco o volume da pistola. Eu não acredito em bruxas, nem sou de grandes temores, mas já estou como diz o outro. Não é a primeira vez que elas aparecem nestas encruzilhadas, assim a desoras. Cruzei o ribeiro no pontão do Cabeço, à direita desabavam as águas da serra pelas fragas do moinho velho, à esquerda clamavam no escuro os cães do Pitorro, rua abaixo, numa raiva insistente. Aproveitei a esquina, fiquei a observar. E não tardou que um par de figuras, vindas da ruela esconsa, entrassem no fraco funil de luz do poste público, uma delas mulher. Abeiraram-se do ribeiro, que ali segue encanado acompanhando a rua, uma obra dos antigos, sem guardas nem protecção, maré de cair uma criança lá dentro, um velho burro trôpego, um trolaró qualquer com dois copos a mais. O Zé, por exemplo, todas as noites por aqui regressa das suas devoções na taberna. Nem a alma se lhes aproveita, caindo pelas fragas que dali se despenham até ao fundo da Aldeia Nova. Pois só ali, passado o moinho do conde, é que o ribeiro sossega e as águas se espreguiçam entre campos, antes de embarcarem na ribeira que lá segue para norte, a caminho do mar do Douro. Dizem porém que esta febre se não acalmará antes dos despenhadeiros do Vesúvio, ao certo não sei, que nunca lá fui.
Mais vultos de má morte do que figuras de gente, assim surgidos do escuro, não se demoraram os dois entrudos à beira do paredão, onde se acocoraram um migalho. Eu dei-lhes o tempo de desaparecerem outra vez ruela abaixo, e não resisti ao bicho da intriga. As águas, que eram muitas, ferviam sôfregas no apertado leito. E ali à beira, debaixo dum calhau, ficara um chapéu de homem, desses de todos os dias, já sem cor certa nem forma consistente, comido já do tempo e do suor.
Apanhá-lo do chão, mirá-lo à escassa lâmpada do candeeiro público e pô-lo de novo debaixo do calhau, foi tudo o mesmo gesto de sobressalto. Ia jurar que era o chapéu do Zé. E de repente faiscou-me na ideia um relâmpago de mau agoiro, ficou-me acelerado o compasso do peito. Eu não sou de grandes temores, já uma vez o deixei dito, mas sei que há forças no mundo contra as quais o coração descoberto dum homem nada pode. E foi ao galope do peito que me afastei dali. Os cães ficaram sossegados, a chuva caía como o céu a mandava, e o estrondo da corrente era um espesso véu.
Não fui capaz de me conter em casa, apesar da chuva. Aquele chapéu era do Zé, tão certo como eu dizê-lo, o que me faltava era entender a estranha encenação que o abandonara ali. Eu tinha visto no olhar mortiço do Manholas mais novo, na cena da taberna, os sinais escuros duma selvajaria antiga e assustadora, do tempo em que o sangue dum homem valia menos que o ronco duma praga atirada ao ar. Senti medo quando saí de casa, não me envergonho de o dizer.
A portinhola do Zé estava fechada e resistiu a um par de encontrões. O clamor das águas, a desabar na cascata por trás do casinhoto, afogava tudo. Fiquei sem saber o que fazer, fiquei sentindo o medo a crescer-me no peito, a arrepiar-me o corpo, os homens de agora são bacalhau demolhado, já não sabem resistir às antigas formas de violência, crua e clara, será isto a civilização.
A parte de trás da casa dos Manholas, lá em baixo na Aldeia Nova, era de pedra solta, feita à antiga, que a miséria da gente nunca permitiu rebocos nem luxos modernos. E eu encostei-me a ela como se quisesse meter-me lá dentro, a um lado para me abrigar da chuva, e a outro para escutar melhor o que para ouvir houvesse.
- Ai que desgrácia tão grande! – era a voz da mulher, um ror de tempo depois, para qual dos dois irmãos não sei. Casada era ela com o mais velho, mas o povo ia jurando que alguns dos filhos eram do mais novo, vá lá a gente saber. E depois que a voz deste respondeu – cale essa puta de boca! – não voltei a ouvir-lhes mais palavra.
Eu nunca fui de grandes temores, pelo menos não me canso de o dizer. Mais pelo frio, decerto, entraram a fraquejar-me as pernas, a tremer, a tremer, sem eu poder fazer nada por elas. E ademais porque dali não se via a entrada da casa, resolvi dar a volta à esquina da ruela, e buscar um mirante melhor. Subi a parede do quinteiro que fora da Rita velha, encostei-me ao telhado, abri o guarda-chuva e deixei a noite correr.
Uma vez aqui chegado já tenho poucas dúvidas. Mas quero ver o resto, tenho que ver o resto, sou com toda a certeza o único estranho em condições de meter as mãos no mistério que aqui se desenrola. O mundo inteiro está por completo adormentado, acaso o próprio Deus, que por cima desta grande chuva estará, nada consegue ver através dela, se não aproveitou para dormitar um pouco numa noite assim.
Até que alguma coisa aconteceu, e foi que um vulto veio à rua, olhou em volta e depois recolheu. E logo após saem dois vultos de homem, aos ombros trazem um volume enrolado, não posso dizer o que vai embrulhado nesta manta ruça de burel antigo, atrás vem uma mulher encapuchada. E saindo todos da fraca luz do candeeiro, lá vão, debaixo da chuva, na direcção do Caminho Mau, ali a dois passos do moinho do conde. Em cinco minutos voltaram, um dos homens traz agora a manta a cobrir a cabeça.
O nascer do dia apanhou-me na cama, com pontadas no peito. E ao fim da manhã trouxe-me a mulher o burburinho da rua. Que o Zé estava lá em baixo afogado no ribeiro, numa das presas do conde. Corri para lá, e com estas minhas mãos o arrastei para o caminho, onde ficou estendido. Tinha vestida a camisita de ontem, na taberna, inteira, sem um rasgão. Não lhe vi sinais nos braços, nem ferimentos na cara, nem mataduras no corpo. Tinha apenas um fundo golpe no crânio, por cima da orelha esquerda. E outro golpe de ferro num ombro, a derrear-lhe o braço do mesmo lado. A tremer das mãos dei-lhe um jeito no corpo, por forma a que mostrasse a melhor face.
O doutor delegado chegou era já noite. Encolhido na casaca, mal olhou para o cadáver do Zé, que estava ali estendido e regelado. Esfregou as mãos uma na outra, bateu no chão os pés impacientes, decretou que o homem tinha morrido afogado, e correu para um automóvel preto, que o esperava.