sexta-feira, 30 de maio de 2008

Era uma vez um cavalo

Toco o rebanho dos anos e o tropel das lembranças pela ruela estreita, entre casas cinzentas. Atravesso a abertura da muralha, e logo me dão os olhos neste barracão, à minha mão esquerda. É uma construção tosca mas firme, tanto como os blocos de cantaria de que é feita, roubados um dia à muralha do castelo, porque a história da selvajaria é mais velha do que o mundo.
O barracão tem largo portão de ferro, chapeado a folha castanha. Terá a minha idade, ou talvez mais, e foi mandado fazer por um doutor, para dar albergue a um cavalo que lá tinha.
O doutor foi sempre uma estranha figura de avarento, nado e crescido num tempo de pura rapina. Há cem ou cinquenta anos, as aldeias que há dispersas por essas penedias formigavam de gente miserável, sempre a disputar uns palmos de terra às fragas do monte, para semear uns grãos de cereal que granjeavam na razão de um para quatro.
O pai do doutor fora um andejo almocreve, que fazia no macho carregado de pregaria todas as feiras e mercados desta raia. Eram brochas e tachas para tamancos de amieiro, relhas de arado, pregos de solho e meio, aldrabas de postigo. Levou três mulheres à igreja, umas donzelas e outras nem tanto, mas donas todas elas de terras e haveres, que ele foi adicionando pacientemente. Repousa agora num jazigo de aldeia, abandonado e tão supérfluo como o gira-vidas do seu autor, que nele quis perpetuar a memória da geração. Acreditava, quem sabe, na imortalidade, não sabia que o tempo passa e o mundo é mais que tudo mudável e os homens inconstantes, tiram-nos hoje o chapéu porque disso depende encherem a barriga, e amanhã, saciados, viram-nos as costas, por lhes termos maltratado o amor-próprio.
O falado doutor, logo que o foi, continuou a obra mesquinha do pai, prisioneiro destes arcaicos modos de pensar e de juntar fortuna. Dois palmos de terra à beira dum caminho, um pinheiro mal nascido numa extrema indefinida, uma pedra aparelhada de algum portal em ruína, tudo era disputado ao pormenor, numa lógica insensata de acumulação. Lia o jornal público no café, comprá-lo era manifesto desperdício. E quando se deslocava a Lisboa, não era pelas boas razões que o fazia na terceira classe do comboio, misturado com as galinhas e o suor encardido dos viajantes mais humildes, que estendiam os farnéis nos mesmos bancos de pau onde alapavam os traseiros esgaçados.
Inimigos tinha muitos, faziam parte da sua concepção do mundo, em que só os fortes e os soberbos têm garantia de futuro. Uma vez mandou um criado seu vedar a tiro um atalho de passagem pela extrema duma courela. Meteu-lhe nas mãos uma pistola, e ordenou-lhe que abatesse o primeiro atrevido, terra sua não era pisada por qualquer um. A madrugada fria de Fevereiro espantou os madrugadores, e lá se livrou o forçado guerrilheiro duns anos de calabouço.
Casou entretanto o doutor com uma fidalgota de fortuna, com taras venéreas na família. Cedo havia de cegar de todo, vítima indefesa do dragão do marido, e uma filha do casal prolonga ainda hoje a sina fatídica da geração. Pastoreia fantasmas num enorme casarão duma praceta de Lisboa, sem marido nem filhos, quem sabe o que dali ainda estará para vir.
Desvaloradas as terras pelas mudanças do mundo, porque fugiram as mãos que as saberiam cuidar, deu a morgada em tomar o único gesto lúcido, que foi saldar o condado. E assim, por inesperada providência, voltaram as oliveiras à mão de quem delas tirava alguma vida, e as cepas de videiras por podar, e algum pinheiral que resistiu aos incêndios, e as corgas, e as courelas, e as tapadas, e as moitas de carvalhos onde já nem cabras entram, e os lameiros onde nenhuma vitela pasta, e as casas abandonadas, dispersas por cinco concelhos. A morgada vendeu tudo, mesmo este barracão encostado à muralha, que o pai mandara fazer, para usufruto do cavalo.
E eu passo aqui, e deparo com o portão de ferro, que hoje guarda as veniagas dum comerciante de secos e molhados. E fico-me a pensar em como um leve gesto muda tantas vezes o correr duma vida. Tinha eu os meus oito anos, já sabia ler, e contar, e assinar o nome próprio, continuar na escola seria desperdício. Que o serviço de menino há-de ser pouco, mas quem o perder é louco. O doutor tinha um cavalo, e o cavalo precisava de um paquete que lhe ajeitasse o penso à manjedoura, lhe mantivesse em ordem os arreios, e lhe apertasse a cilha havendo cavaleiro. Não era função que estivesse para além das minhas fracas forças, por alguma ponta há-de um homem começar a meada da vida.
Assim foi a proposta do doutor, seguro de que o contrato respeitava as normas do bom viver e da sã sociedade. O mundo inteiro não chegava para todos, por força caberia a uns servir, e a outros o cuidar. Mas a isso o caseiro disse não.
O doutor alvoroçou-se, pensou que o mundo ficara incompreensível. E tinha toda a razão. O mundo deixou de ser o que era, e nunca mais foi possível entendê-lo. Eu não vim a conhecer o bicho que me esperava. E o doutor, que o era da medicina, acabou às mãos dum cancro qualquer. Dorme aí nalgum jazigo que ninguém visita nunca, e nem em dia de finados há quem se dê ao cuidado de o lembrar.