Vêm notícias de mulheres do Chile sujeitas a torturas brutais, com cabelos rapados, com seios retalhados, com violações repetidas, com órgãos genitais destruídos por choques eléctricos, por ratos, por aranhas. O bispo do Porto afirmou que os objectivos dos militares coincidem com os fins da igreja, mas os católicos de Braga estão em guerra civil por causa dum cónego, e a serem tão iguais os fins, só pode estar nos meios a questão. Registados foram trezentos casos de cólera em todo o país, até ao fim do ano virão mais dois mil, searas ardem por todo o Alentejo, em Selmes, em Vale de Vargo, em Ouguela, em Bensafrim, e se não ardem searas são as espigas que dobram, maduras, até ao chão, sem que a ceifa seja mandada fazer, quem há-de entender esta traição, bem vão os trabalhadores desta companhia de electricidade, que oferecem um dia de salário para a salvação da nação. Mas Portugal é um náufrago exangue, e traz atada ao pescoço uma mó de moinho remotíssima, por isso se demite este primeiro-ministro, por causa do problema colonial, por causa do problema económico, por causa do problema das novas formas de escravidão que aí vêm.
Extremistas brancos lançaram em Luanda o fósforo primeiro, outros se seguirão, espalhados na areia ficam mais de cem mortos, no Precol, na Cuca, no Cazenga, e outros tantos nas cidades do Índico, que saem a arder dos acordos de Lusaca. Por sobre o mais, oitenta países reconheceram já a independência de Madina do Boé. Pelos bairros africanos só se ouve o martelar de caixões e contentores, é um estranho batuque este dos brancos, que viraram mestres carpinteiros a arrecadar mobílias, a arrecadar peles de zebra e bustos de marfim, a arrecadar tapetes de leões. Aviões e navios deixam a África atulhados de gente, a abarrotar de camionetas e de lágrimas, a abarrotar de paisagens perdidas, e de caixotes de amargura e ódio.
Arde o Pinhal do Rei pela primeira vez. Quiçá para vencer o medo, estes meninos da associação juvenil montaram guarda ao Matagal dos Medos. Brigadas universitárias do Porto combatem em Chaves o analfabetismo, e a miserável situação social e sanitária em que vive o nosso povo. Em Nisa, por baixo desta janela, uma mão que logo se esconde deixa o aviso, a negro, os comunistas roubam os filhos às mães aos sete anos. Por lhe parecer fraca a façanha, e antes que possa um homem recobrar do íntimo calafrio, logo redobra o alerta naquele pano de branca parede, os comunistas matam os velhos inúteis com uma injecção atrás da orelha.
Há novo incêndio no Pinhal do Rei, enquanto ardem as matas da Lousã, da Amora, de Santa Luzia em Viana, de Pombal, bem avisado andará este monsenhor que leva a paróquia de excursão a Fátima, e à vista dos fumos de Poiares não tem hesitações, os comunistas é que põem este país a arder. Verdade ou mentira, é fogo posto o que lavra no palácio da Ajuda, ardem à beira do Tejo quinhentas obras de arte que falavam de reis antigos. Por sabotagem descarrila um comboio na Beira Alta, coros e danças da marinha soviética enchem o coliseu de Lisboa, e Moscovo compra dois milhóes de toneladas de trigo ameticano.
No Kebo são trocados sete prisioneiros portugueses por trinta e quatro africanos, não está mal este câmbio, pensamos nós, por não sabermos que só este Maltês conta por sete. Há três anos foi capturado numa emboscada, por lá o arrastaram até chegar à prisão, para lá da fronteira, na cabeça levava estilhaços avulsos de granada. Puseram-lhe o nome na lista dos mortos, e nesta aldeia da Maia todos acreditam porque viram o caixão, um pelotão de artilharia veio do Porto e trouxe para o cemitério os seus restos mortais. Disseram-lhe uma missa por alma, escreveram-lhe o nome por cima duma campa, esqueceram-se dele. E agora ele vai chegar, trocado por sete negros, traz uma sombra espessa e real atrás de si, alguém vai ter que obrar aqui um novo milagre da ressurreição. É ele próprio quem mete mãos à terra, ergue lá do fundo os restos dumas tábuas, estão três pedras lá dentro.