domingo, 25 de maio de 2025

As Aves 6-6

Vêm notícias de mulheres do Chile sujeitas a torturas brutais, com cabelos rapados, com seios retalhados, com violações repetidas, com órgãos genitais destruídos por choques eléctricos, por ratos, por aranhas. O bispo do Porto afirmou que os objectivos dos militares coincidem com os fins da igreja, mas os católicos de Braga estão em guerra civil por causa dum cónego, e a serem tão iguais os fins, só pode estar nos meios a questão. Registados foram trezentos casos de cólera em todo o país, até ao fim do ano virão mais dois mil, searas ardem por todo o Alentejo, em Selmes, em Vale de Vargo, em Ouguela, em Bensafrim, e se não ardem searas são as espigas que dobram, maduras, até ao chão, sem que a ceifa seja mandada fazer, quem há-de entender esta traição, bem vão os trabalhadores desta companhia de electricidade, que oferecem um dia de salário para a salvação da nação. Mas Portugal é um náufrago exangue, e traz atada ao pescoço uma mó de moinho remotíssima, por isso se demite este primeiro-ministro, por causa do problema colonial, por causa do problema económico, por causa do problema das novas formas de escravidão que aí vêm.

Extremistas brancos lançaram em Luanda o fósforo primeiro, outros se seguirão, espalhados na areia ficam mais de cem mortos, no Precol, na Cuca, no Cazenga, e outros tantos nas cidades do Índico, que saem a arder dos acordos de Lusaca. Por sobre o mais, oitenta países reconheceram já a independência de Madina do Boé. Pelos bairros africanos só se ouve o martelar de caixões e contentores, é um estranho batuque este dos brancos, que viraram mestres carpinteiros a arrecadar mobílias, a arrecadar peles de zebra e bustos de marfim, a arrecadar tapetes de leões. Aviões e navios deixam a África atulhados de gente, a abarrotar de camionetas e de lágrimas, a abarrotar de paisagens perdidas, e de caixotes de amargura e ódio.

Arde o Pinhal do Rei pela primeira vez. Quiçá para vencer o medo, estes meninos da associação juvenil montaram guarda ao Matagal dos Medos. Brigadas universitárias do Porto combatem em Chaves o analfabetismo, e a miserável situação social e sanitária em que vive o nosso povo. Em Nisa, por baixo desta janela, uma mão que logo se esconde deixa o aviso, a negro, os comunistas roubam os filhos às mães aos sete anos. Por lhe parecer fraca a façanha, e antes que possa um homem recobrar do íntimo calafrio, logo redobra o alerta naquele pano de branca parede, os comunistas matam os velhos inúteis com uma injecção atrás da orelha.

Há novo incêndio no Pinhal do Rei, enquanto ardem as matas da Lousã, da Amora, de Santa Luzia em Viana, de Pombal, bem avisado andará este monsenhor que leva a paróquia de excursão a Fátima, e à vista dos fumos de Poiares não tem hesitações, os comunistas é que põem este país a arder. Verdade ou mentira, é fogo posto o que lavra no palácio da Ajuda, ardem à beira do Tejo quinhentas obras de arte que falavam de reis antigos. Por sabotagem descarrila um comboio na Beira Alta, coros e danças da marinha soviética enchem o coliseu de Lisboa, e Moscovo compra dois milhóes de toneladas de trigo ameticano.

No Kebo são trocados sete prisioneiros portugueses por trinta e quatro africanos, não está mal este câmbio, pensamos nós, por não sabermos que só este Maltês conta por sete. Há três anos foi capturado numa emboscada, por lá o arrastaram até chegar à prisão, para lá da fronteira, na cabeça levava estilhaços avulsos de granada. Puseram-lhe o nome na lista dos mortos, e nesta aldeia da Maia todos acreditam porque viram o caixão, um pelotão de artilharia veio do Porto e trouxe para o cemitério os seus restos mortais. Disseram-lhe uma missa por alma, escreveram-lhe o nome por cima duma campa, esqueceram-se dele. E agora ele vai chegar, trocado por sete negros, traz uma sombra espessa e real atrás de si, alguém vai ter que obrar aqui um novo milagre da ressurreição. É ele próprio quem mete mãos à terra, ergue lá do fundo os restos dumas tábuas, estão três pedras lá dentro.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

As Aves 6-5

Isso mesmo é o que acontece a Portugal, tolhido em solidão, orgulhosamente só. O mundo riscara-nos do mapa, agências difundiam a espaços mais uma condenação da Onu, abstenção da América por causa dos Açores, votos contrários das falanges de Madrid, dum Brasil comprometido às vezes, dos africânderes do Cabo, se a isso eram chamados. E de repente a revolução soltou rumores na imprensa inteira, não há dia em que não se fale de nós por esse mundo, este jornal católico francês adverte que o pequeno Portugal se arrisca a ter de pagar, por muito tempo, a política anacrónica dos antigos dirigentes, olha a novidade, e estoutro, comunista, lembra que o inventário dos longos anos da ditadura é catastrófico, a quem o dizem eles. Perante a incerteza das tendências, um trabalhista escandinavo sustenta, liminar, no estado terminal em que o país se achava, qualquer leve mudança só pode ser para melhor.

Por não ter sabido a tempo de tão fausta novidade, suicidou-se em casa, no Porto, o carcereiro da Pide, logo esse que tanta história nos podia contar. E, por causa das persistentes dúvidas, arrisca João Padeiro um anúncio no jornal, a proclamar que nunca foi denunciante nem informador. Quem dúvidas não tem, nem padece de hesitações, são estes pescadores da Afurada, a julgar pelo arrebato com que arreiam no largo um busto de almirante, a mando de quem vão traineiras e marés e gentes da pesca em geral. Atam-lhe uma bóia ao pescoço e lançam-no ao rio, é uma geral risota, lá vai o manipanso a caminho da foz, a simples cabeça escura espadanando à flor da rebentação, vai-se travar aqui a última batalha contra o mar tenebroso. Aproveitemos nós para tirar a limpo a remota questão, quem foi que sujeitou Marte, a quem irá Neptuno obedecer.

Vai um frenesi por esta terra, pela pressa se vê que chegamos atrasados à história, só partidos políticos são já cinquenta. Toda a gente quer um sindicato, são os artistas plásticos, os cartonageiros, os administrativos do ensino, a construção civil, os ferroviários, os funcionários públicos, os magistrados, os serviços sociais, a marinha mercante e os cerâmicos,os estivadores e os hoteleiros, as prostitutas e os enfermeiros do Porto, os pescadores do arrasto, os médicos e os mármores e os motoristas, os metalúrgicos de Setúbal, os jardineiros e os farmacêuticos, os caixeiros, os profissionais de informática, e aqui só os padres estariam em falta, se há muito não estivessem já servidos.

A vida deste povo é um antiquíssimo estendal de queixas, Lisboa não tem pão nem transportes, os correios estão paralisados, é um corropio de saneamentos nas universidades, nas autarquias, nos hospitais, nas administrações, já avisam os comunistas que a impaciência gera amargos de boca, fala quem muito teve que aprender, são cinquenta anos de guerra contra uma armadura de ferro. Mas bem prega frei Tomás, que já nesta empresa são ocupadas as instalações, em face da traição reformista é necessária uma aliança revolucionária em que a classe operária se organize autonomamente formando os seus comités políticos e os seus sovietes, onde terão eles ouvido a lenga-lenga, já em Direito se está marchando em frente pelo controle estudantil da escola capitalista, já os meninos do Pedro Nunes entraram em greve até à abolição dos exames, já na Renascença avançámos para a autogestão contra a padralhada reaccionária, já em Letras se exige a passagem administrativa em todas as cadeiras, lá vamos, cantando e rindo.

No porto de Lourenço Marques três mil estivadores entram em greve, está paralisado o caminho de ferro de Benguela, grevistas são treze mil, aumentam os ataques aos quartéis na Guiné, Buruntuma é desactivada, afinal nem tudo vai melhor com Coca-Cola Grande, por isso a guarnição de Jamberem deixa para trás o posto fronteiriço e vai asilar no quartel de Cacine. O império africano é um caldeirão fervente, é um grito do Ipiranga há muito sufocado, e que vai agora chegar fogo às peças e aos canhões, se é da liberdade que estamos a falar, nem mais um soldado para as colónias. Os comunistas advertem que o povo deve repelir os demagogos e aventureiros da esquerda, trezentos mil exemplares do Eça logo se esgotaram em Moscovo e um grupo do teatro Bolschoi vem a Lisboa, mas Sakharov protesta com uma greve da fome, mas Rostropovich está exilado em Londres, mas Barischnikov deserta no Canadá, esta bailarina do Kirov é impedida de se juntar ao marido que está na América, e um general de olho de vidro está clamando que o povo não deve deixar-se iludir por novos ditadores. (Cont.)

quinta-feira, 15 de maio de 2025

As Aves 6-4

Tanta lida para tão pouca vida, é caso para dizer. Anda uma enlevada princesinha a preparar-se durante meses, a cumprir as difíceis provas da mocidade portuguesa, a picar os dedinhos no bastidor, a passajar buracos numas meias de homem, indistinto ainda mas pairando já no horizonte, Deus saberá se fadário ou estrela da manhã, a batalhar com uns vincos de camisa até não resistir nenhum, a apurar os segredos do refogado e da restante culinária, se se diz  que passa por aí o caminho do coração dos homens, a esmerar-se nas artes da vassoura, a esticar como convém a dobra do lençol, a cuidar de vestir os culotes do avesso, não vá uma costura estouvanada, por simples relaxamento que a pouca idade explica, roçar-se onde não deve e acordar o que dormindo está, a provar pelas cores da casula que vai sempre à missa das dez ao domingo, e tudo isto na presença dum secretário de estado, e dum director-geral, e do apuradíssimo dedo de avulsas individualidades. Anda ela nisto e tudo é vão labor, pois nenhum destes príncipes há-de vir requestá-la, de sapatinho na mão, se mortos jazem todos, já frios, no plaino abandonado, não há brisa que os possa aquecer. E sobre o mais, a atentar no caminho que as coisas levam, em breve há-de vir a história arrancar-lhe a coroa e destroná-la, e devolver esta cinderela à mais anónima vulgaridade.

Em breve chega também a segunda edição do jornal, da maior actualidade e sem vistos da censura, a acreditar nos brados do rapazito ardina. Houve tiroteio na sede da Pide, quatro mortos ficaram na calçada. Enquanto à pressa queimavam papéis, alguns esbirros acolheram com balas o clamor dos populares. Cada um faz na vida o que melhor quadra à sua especialidade, que às vezes nada é, como se vê nesta sessão de quinze minutos da Assembleia Nacional, trinta e nove deputados responderam à chamada do senhor presidente, nada acho de melhor para dizer nesta hora a vossas excelências do que recordar-lhes uma frase eterna, dita noutra terra e noutras circunstâncias, muita gente espera de nós que cumpramos o nosso dever.

Cumpriram todos, que desandaram de vez, e muito melhor cumpriu o povo. Nas ruas não cessam os abraços e paparicos aos soldados, é uma preia-mar de emoções, cai-nos do céu este pão e este conduto, ele é presuntos e queijos e fiambres que ninguém sabe donde vêm, ele é garrafas de leite e outras mais graduadas poções, há vinte e quatro horas que estamos sem comer, nem para arranchar nos sobra tempo. Começam a sair os presos dos curros de Peniche, das celas de Caxias, homens maduros a oscilar entre o grito e a lágrima, perdidos de júbilo nos braços dos amigos, vivo na clandestinidade desde mil novecentose quarenta e sete, o melhor de trinta anos, isto afirma um homem de barba espessa, um dos que ajudou a comandar o avião libertário dos folhetos de Helena, de quem já se falou.

Do estrangeiro vão chegando homens do pensamento, mestres demitidos das universidades, políticos exilados há décadas, só este ancião que agora regressa viveu quarenta e sete anos no Brasil, ele é Sertório que passou dezasseis em Argel, e Ayala doze em Marrocos, e Miguel dezassete ma Venezuela, e Santos e Manuel também dez em Argel, a Gomes couberam dezasseis no Brasil, não tem fim este rol de almas pelo mundo em pedaços repartidas, só neste avião da liberdade chegam duma vez quarenta e duas. Desembarcam dos comboios jovens cantores proibidos, refractários da tropa que eram cem mil por ano, na verdade, é o que diz o reclame, são as chinchilas quem se dá bem na nossa terra, enquanto não vierem a saber o que no fim do caminho as espera. (Cont.)