quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

As Aves 5-5

A senhora conhecerá este quadro dos livros, não duvido, mas convir-lhe-á aqui voltar a ele, com os olhos atentos do imaginar. Sai, manhã cedo, dos Estaus do Rossio,a procissão. Por ter aqui a morte o primeiríssimo lugar, vai à cabeça da fila a ossada do Vila Real, ao dorso dum verdugo encapuchado, naquela caixa escura onde esperneiam horrendos demónios escarlates. Atrás da mancha negra dos domínicos, que lá vai adiante fraldejando o pendão da justiça e da misericórdia, seguem os condenados, por ordem crescente das culpas confessadas. Toda a cidade se juntou na Ribeira, Lisboa inteira acotovela-se à volta do patíbulo para ver espezinhados os hereges, para sentir-lhes o uivo medonho das carnes lentamente esturradas, não poucos se acotovelam para alcançarem um lugar mais fronteiro, para receberem em mão as bênçãos que um frade está esparzindo, porém o mais da ruidosa multidão dispara chufas e pedradas, e tochas de pez a arder, e, por não poderem estes quadrilheiros conter a populaça tomada de furor, recebeu o lobisomem de Alenquer uma zagunchada no rosto, em tal péssimo estado irá ele apresentar-se à justiça divina, com este olho direito vazado e descaído, ainda bem que já leva aprontada a justiça.

Assim feitos em fumo, perderam estes de tudo a melhor parte, que é o banquete da comemoração. Não faltam à mesa priores de conventos, dignitários subidos, ordinários e deputados, párocos seculares e familiares do Santo Ofício. Nem faltam as doçarias e mimos da freiria, as talhas de vinho do Cartaxo e muitos peixes do generoso Tejo, múltiplas aves de pena e carnes numerosas, louvado seja Deus por tamanha abundância, só carneiros consumiram-se catorze.

Era assim. Mas já dois séculos antes, mal tinha o Gama achado o caminho das Índias, houve entre nós outro monarca excelente e piedoso, que lá fora estipendiou os melhores mestres do moderno pensamento, para ilustração das escolas do reino, um deles, escocês, o viria a crismar de rei dos muitos nomes. Quem não tem ciência paga por ela, já uma vez ficou dito por ser verdade, como se vê tão antiga como a própria ignorância. A salamanca foi ele requestar Clenardo de Lovaina, um homem de saber e modestos costumes, para educar os príncipes seus filhos. Ora já seu pai, para calamento e satisfação do fanatismo, ao mesmo tempo em que abria as portas do império, logo lhe amputava as pernas, ao expulsar do país os hebreus, donos dos cabedais e do saber que a empresa sumamente exigia. De modo igual, o piedoso rei dos muitos nomes, enquanto chamava os homens que às escolas trariam saber e civilização, logo mandou vir de Roma o jesuíta, que sem demora faria do reino coisa sua. Ademais, por lhe parecer isso tão pouco, logo aos mesmos renomados mestres cortava as pernas e o pescoço, requisitando ao papa a Santa Inquisição, que sem demora os meteria a tratos, por hereges. Entenda quem puder, e antes que tarde seja ouçamos a Clenardo, ele nos contará o que viu e deixou dito.

Chega do mar escravaria e ouro, e pimenta às quintaladas, por isso vive Portugal à grande e à francesa, qualquer trabalho útil se tem como vergonha. Jazem os campos de pousio a monte, que todos sevão ao cheiro da canela, às margens do rio de Meca, e muito melhor não estariam as artes mecânicas, se os ruivos europeus não viessem cá dentro exercitá-las. Os naturais desdenham servir-se das mãos, e tudo é feito por escravos e mouros cativos, esses que o próprio Deus despreza, ele é a preta da Mina que vai ao mercado, é a preta da Mina que lava a roupa, é a preta da Mina que varre a casa, é a preta da Mina que vai pela infusa de água, é a preta da Mina que faz os despejos à hora conveniente, e é ainda a preta da Mina a parir os filhos escravos com que havemos de lucrar no mercado, como se fizéssemos criação de pombos. Todos somos fidalgos, ou para lá caminhamos, por isso nos acompanha sempre, rua abaixo ou rua acima, a mesma comitiva, adiante os dois criados batedores, e um terceiro que nos leva o chapéu, e um quarto o capote, não vá ele chover, um quinto segura as rédeas da cavalgadura, um sexto vai ao estribo, a cuidar-nos da seda dos sapatos, um sétimo traz a escova, com que nos limpa do fato as poeiradas da rua imunda, um oitavo nos estenderá o pente em sendo necessário, e ao nono caberá enxugar com uma fralda o suor da cavalgadura, vindo ela a ser desmontada. Com tudo isto sofre a mantença da casa, onde a custo se acha que comer, mormente quando chega o domingo, dia em que ninguém apanha rabanetes na praça.

Aqui chegado, deu Gabriel com a ouvinte rendida ao fio cristalino da sua erudição. Não venho com estas coisas a dar-lhe lições de história, apressou-se a dizer, por certo dispensará as minhas, se as teve melhores. Porém, vastos demais são os tempos e muito longa a forma de os decifrar e dizer, para vidas tão curtas como as nossas, cada um há-se saber da sua. (Cont.)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

As Aves 5-4

E a quem hoje ainda sobrem dúvidas, bastará que se alongue numa tarde soalheira ali ao poviléu dos Povos, a seu tempo uma terra importante, dois passos a pé além de Vila Franca. Lá se erigiu um dia uma fábrica inteira de curtição de couros, com peitas e subornos se aliciaram na Escócia os mestres que haviam de trazer os segredos da casca dos carvalhos, chegaram mesmo a subir o Tejo as fragatas carregadas de peles vindas do Maranhão. Mas logo o inglês moveu empenhos, logo às secretarias da corte fez chegar ameaças e ralhos, a fábrica é que nada veio a fabricar. E o que dela restou é o que aos olhos se nos mostra, a alvenaria perfeita dos muros, a ruína das casas dos obreiros que não chegaram a sê-lo, viriam a desabar finalmente os telhados, figueiras bravas cresceram pelos pátios, tufos de silvados irrompem hoje das janelas.

Ia nesta altura a meio o século das luzes na Europa, retomou Gabriel, e mais que todos brilhava o vivíssimo espírito francês, porém por cá o céu continuava obscuro, do fumo em que se chamuscavam os hereges, e dos braseiros em que se iam aniquilando as consciências. Atente-se, a exemplo, nos tratos que sofreu Manuel Fernandes Vila Real, cristão-novo de pouco mais de quarenta anos, cuja ossada vai arder neste auto-de-fé do assinalado dia primeiro de Dezembro. Homem de viagens e culturas, andarilho do vasto mundo, defendeu a pátria nas praças marroquinas e foi provado servidor dos interesses do rei na corte francesa. A custas suas fez publicar as Décadas da Índia, dum tal Diogo do Couto. Mas iria ser um livro que escreveu, exaltando o vosso cardeal Richelieu, e mais as delações dum frade conterrâneo, invejoso e medíocre, que haviam de ditar-lhe a sentença de morte na Santa Inquisição, a qual foi assinada em Março no palácio do Rossio, ainda o caviloso réu se encontrava em Paris. O Vila Real regressou a Lisboa em fins de Abril, achou-se encarcerado em Outubro, e foi inquirido pela primeira vez cinco meses mais tarde. Ninguém lhe decifra que crime cometeu, nunca saberá de que vem acusado, pacientes que são os autos e eterno o tempo de Deus, como é sabido, a confissão espontânea há-de chegar um dia. O réu é que nunca virá a saber que testemunhas o acusam, nem pode constituir advogado que o defenda. Por três vezes o levam à polé, por três vezes lhe amarram os membros aos madeiros, por três vezes lhe espedaçam as juntas do corpo, que estalam ao romper-se. E, por sobre tudo, na cela medonha onde vai servindo de repasto a ratos e a piolhos, a baratas e a percevejos, introduzem-lhe um falso prisioneiro, espião subornado e delator. Com afagos e blandícias, tecerá o malsim em sua roda uma teia de pérfidos laços, na qual o desgraçado cairá um dia. 

Conquanto negativo e pertinaz, lá acabaria o Vila Real por confessar o que os santos frades tanto esperam ouvir, se não se desse o caso de haver sucumbido à quarta volta da polé. Sossegaram finalmente os atiçados ânimos. E, invocando o nome de Cristo, enfim se proclamou que o Vila Real foi herege e apóstata da recta fé católica, e lá por fora se bandeou com os inimigos da Santa Madre Igreja, e porque em vida tão simulado foi, e falso, e ficto, ser-lhe-ão os ossos descarnados e se queimarão na Ribeira.

Desdita maior é a dos restantes infortunados réus, que são três mulheres por bruxedo, mais dois cristãos-novos por convicta marranice, e mormente a deste João Fagundes Bento, feiticeiro de Alenquer, que a tempo não morreu e arderávivo. Dele consta que se entregou a pactos, e opera curas infernais pela mão do maligno, e pratica visões, e blasfema profecias messiânicas, e lança danações e maus-olhados que fazem cair raios sobre as casas, e são razão das pestes, e motivo das fomes, e levam à perdição as naus da Índia.

E agora afigure a senhora uma tal humana sociedade em que amigos atraiçoam conhecidos, em que pais delatam contra filhos, em que irmãos se denunciam entre si, em que os familiares do Santo Ofício se insinuam nos lares enquanto médicos, enquanto confessores, enquanto íntimos amigos, até captarem os sinais da heresia e os apresentarem a juízo. Ao fim de duzentos anos, diga-me o que sobra da alma deste povo, para quem a delação é indulgência e virtude de salvação.

Ao fazer a pergunta interrompeu-se Gabriel. Subiu um olhar lento pelas formas da mulher, assim abandonadas na poltrona, como quem aspira um fôlego febril, como quem, por fim, atenta nela. Sustém-lhe a mirada nos olhos, muito fixa, inclinado para ela o troco fatigado, ergue no ar as mãos ambas que o ajudam a ilustrar o cenário, e finalmente prossegue. (cont.)

domingo, 16 de fevereiro de 2025

As Aves 5-3

Diz o marquês que numerosos estrangeiros vêm apoquentando el-rei com suas memórias e propostas, visando enriquecer-se a si próprios e ao reino através da agricultura ou das manufacturas, ignorantes de que tais iniciativas e empreendimentos não convêm ao bem do estado,e menos ainda ao sossego e à ventura dos seus habitantes. Pois já que Deus fez do reino o dono de todo o ouro que se tira do Brasil, quase sem ter de cavar, e pois que esse ouro está distante, a mais de duzentas léguas para o interior, o único perigo à vista é a cobiça dos países estrangeiros, que, assaltando os nossos portos, poderiam vir a privar-nos do desfrute de tais tesouros. Nada disso acontecerá, porém, enquanto os ingleses dispuserem do país como vazadouro dos produtos das suas terras e indústrias, caso em que verterão o seu sangue até à derradeira gota, para nos defenderem.

Não têm outra escolha os ingleses, senão trabalhar e proteger-nos, e lá terão a paga assegurada, chega a dizer-se que o ouro do Brasil não alcança a pôr pé em terra portuguesa, que sai das nossas naus para entrar nos porões das armadas inglesas. E assim será, porém do mal o menos, antigamente eram as fragatas holandesas o baú do ouro das Índias, sem mais contrapartida. Pois nós damos aos ingleses maior lucro do que todas as outras nações juntas, sendo eles os únicos a embarcar os nossos vinhos do Douro e as nossas tenras vitelas do Barroso, para uns e outras nos falta a nós aguçado paladar.

Havemos, isso sim, de temer-nos de franceses, prosseguiu o marquês, de quem gostamos mais que dos ingleses, já que somos da mesma religião, e até lhes damos a casar as nossas filhas. Mas a protecção duns nos é mais útil do que a amizade doutros. Os franceses podem fazer-nos guerra sem ferir o seu comércio, e já o teriam feito se não se temessem, no que seriam prontamente ajudados por outras potências marítimas, zelosas das parcas moedas de ouro que os ingleses lhes deixam. E se estes não levam tudo é por mera artimanha política, já que poderiam fazê-lo, dispondo, como dispõem, abundantemente, de toda a qualidade de mercadorias que nos convêm.

Iguais são os motivos por que não desejamos dar-nos à exploração das minas de cobre do Algarve, e das minas de estanho e prata das partes setentrionais do reino, pois assim iríamos arruinar um dos ramos do comércio inglês. Vós sois suíço, vindes dum país que não tem interesse em contender connosco. Por isso vos falo com o coração nas mãos, e vos revelo o político segredo em que assenta a nossa ventura. Só com Roma não podemos manter altercações, já que Roma, embora precisada de nós, nem por isso deixaria de nos prejudicar. Demasiada bulha vem fazendo el-rei, sem falarmos agora do dispêndio de fazendas, só para que os núncios de Sua Santidade em Portugal tenham direito ao chapéu cardinalício. Para açular a inveja dos nossos vizinhos, bastam as bênçãos que Deus nos distribui no Brasil. Havemos, pois, de viver em paz com toda a cristandade, e governar-nos por tal forma que, se uma parte das nações conspirar em perder-nos, a outra se desunhará para nos defender. Deus nos valerá!

Mas não valeu. Nem às pretensões do senhor Merveilleux,  o qual, de abismado, não logrou maneira de contestar o marquês, nem às costumadas penúrias do povo do reino. Já que, à morte deste rei maquiavel agudíssimo, alguma ousada voz de embaixador ilustre, que muito viu e aprendeu nas cortes da Europa, escreverá um dia ao príncipe, herdeiro na sucessão, achará Vossa Alteza boas povoações como Covilhã, Fundão, Guarda, Lamego, Bragança e outras muitas quase desertas, e destruídas as suas manufacturas. Não sei de alguém que a tanto se atreva, porém a mim não me permite a idade final senão a liberdade e o destemor de vos dizer das causas desta dissolução. E vem a ser que, por mão da Inquisição, prendendo uns cristãos.novos e outros fazendo fugir para fora do reino com seus cabedais, por temerem ver-se confiscados sendo presos, forçoso foi que tais manufacturas decaíssem, porque tais chamados cristãos-novos as sustentavam. E a causa segunda vem a ser a permissão que Sua Majestade deu aos ingleses para meterem em Portugal os seus lanifícios, e fios de seda, e vidros, e ferros temperados, e couros curtidos, e toda a sorte de mercadoria.

Razão maior tinha o velho embaixador. (Cont.)

sábado, 15 de fevereiro de 2025

As Aves 5-2

Lá fora batem rijos os aços do comboio furando a noite, alguém lhe chamou idêntica, será verdade. Do que não há que duvidar, se ela própria o afirma, é chamar-se Geneviève esta mulher, e regressar a casa depois duma semana inteira de lições numa escola de sociologia, malquista ciência esta em Portugal, se todas, há séculos, o não são. E de novo lhe aflora ao rosto uma surpresa, agora sim, real e verdadeira, quando sabe serem portugueses estes viajantes de gesto polido, de semblante cortês um pouco melancólico, que falam bem francês e se dirigem a Paris. Dos portugueses, que há anos povoaram a França, tudo quanto lhe consta é serem eles muito sofridos nos trabalhos rudes e elas porteiras humílimas, quem é que falou um dia em rainhas destronadas, uns e outros vivendo em bidonvilles, e a salvarem às vezes da lixeira, a horas da madrugada, bonecos manetas e ursinhos de olhos vazados, com que os filhos hão-de brincar. De Portugal tem sabido alguma coisa pela imprensa, no último ano falou-se bastante duma revolução de flores com militares à mistura, ou duma estranha revolução de militares misturados com as flores. Ao dizer isto a mulher riu-se do jogo de palavras, e logo tropeçou no ar subitamente sério de Gabriel, que não apreciou o trocadilho, para socióloga andará a senhora pouco atenta às realidades do mundo, chama-se a isso na minha terra espeto de pau em casa de ferreiro. Geneviève acusou o toque, faiscou-lhe no olhar uma vibração imperceptível, um virar subtil de agulha, e foi então que deixou cair o pedido cortês, fala-me da tua revolução.

Gabriel apanhou do assento a revista que pusera de lado, alisou-lhe a palma lenta da mão sobre o joelho, ganhou alguns segundos na busca deste fio de novelo emaranhado, e começou a responder.

A minha revolução é uma história marcada há muitos anos num calendário antigo, minha cara senhora, a minha geração tinha-a inscrita no destino desde há séculos, como se os portugueses vivessem ainda no tempo das tragédias gregas, suspensos da mão de fados caprichosos. Nessa história muitos lances dariam para rir se tão trágicos não fossem, alguns de nós se habituaram há muito a olhá-los como farsa e viram costas, por lhes parecer este o modo mais fácil de os esquecer, quem vai agora averiguar razões. Ademais não se deslinda em meia dúzia de palavras, sem esforço e muito tempo, ainda bem que Paris fica longe, a uma noite inteira de caminho.

E, se por algum lado havemos de começar, dir-lhe-ei que existiu em Portugal, um dia, um rei magnânimo e beato, ninguém lhe veio a chamar rei-sol porque um francês qualquer se antecipou, o qual se divertia a assistir aos autos-de-fé dos padres na ribeira do Tejo, e gastou o melhor da vida a povoar o reino de bastardos, que semeou a esmo nos abrasados ventres da freiria incontável de Lisboa. Um dia chamou para lhe estudar o reino o senhor Merveilleux, naturalista suíço, reputado de fama e promissor de nome, pois quem não tem ciência paga por ela, toda a vida assim foi, mormente em se tratando do rei de Portugal que não tem precisão de olhar a despesas, assim se mantenham firmes os filões de oiro do sertão do Brasil.

Comprovam os achados botânicos da utilíssima genciana, curadora de pestes e abundosa nos altos lugares da província da Beira, que o suíço meteu pés aos caminhos e fez o que dele se esperava. Mas não ficou por aí. Homem atento e oportuno, vindo a saber das descargas de salitre que os mercadores traziam da Holanda, concebeu o plano de explorar os abundantes filões de Alcabideche. E apresentou os seus empenhos numa noite, ao serão com o velho marquês de Fronteira, vedor da fazenda, presidente do desembargo do paço, membro do conselho de estado e mordomo-mor da rainha austríaca. Havia de parecer adquirido o desembargo da empresa, melhor porta não havia onde bater. Porém, em vez do bom despacho, o que o homem ouviu foi apurada lição de ciência política, e a prova cabal, se falta cá fizesse, de como em Portugal é subtil e engenhosa a arte de governar. (Cont.)

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

As Aves 5-1

Fala-me da tua revolução, foram estas as palavras da mulher, ainda jovem, que entrou no comboio em Dax. Claro que não foi assim do pé para a mão que a imperativa explodiu, tudo na vida tem o seu germinar e o seu nascer, mormente em se tratando da apurada manobra destes comércios humanos. A mulher, que deambulava no cais, a protestar com a neblina e o frio, embarcou finalmente nesta carruagem nocturna, procurou um compartimento mais desafogado, e acabou a decidir-se por este ocupado somente por dois viajantes tranquilos, já era tempo de o serem. Um deles folheia uma revista, o outro vai olhando para lá da janela o que se podever da noite antiquíssima.

A sua entrada acordou naturais curiosidades, atraiu os olhares enquanto se desfazia da capa molhada, Gabriel levantou-se, tenteou um primeiro gesto na direcção do saco de viagem, a consequência foi tê-lo içado para a grade das bagagens. Foi aqui a vezda mulher abrir um sorriso de real ou fingida surpresa, tão raros são de ver, hoje em dia, estes requebros de viril gentileza. Mas antes dela fora Gaspar o primeiro a ficar surpreendido, não há dúvida que mudámos de mundo, onde é que uma mulher portuguesa viria agora sentar-se num compartimento só ocupado por dois estranhos neste comboio, demais a esta hora da noite e prevendo-se longa a viagem. A mulher agradeceu, num jeito contido embora manifesto, e nós, que vamos fazer desta aparente contradição que nos fica nos braços, não tem de quê, foi mais o gesto que o esforço, isto é o que sugere a ínfima vénia de Gabriel e uma poucas palavras em francês.

É bem verdade só existirmos nós por aquilo que fazemos, ou pela função que temos a desempenhar, não faltarão aqui os filósofos da ataraxia atestando o contrário, ou os poetas do fingimento, sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo... contente quase e bebedor tranquilo, A prová-lo, porém, vem Gabriel, que só agora ganhou direito a nome e a uma identidade, não fora este seu gesto cavalheiro e passava por nós sem deixar rasto, tarde demais íamos descobrir quanto ficávamos a perder. (Cont.)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

As Aves 4-7

Os viajantes chegaram à fronteira quando a noite caía. E só João interrompeu o mutismo geral para recolher os passaportes,  saiu devagar da viatura e dirigiu-se à casa dos guardas. O silêncio tornou-se mais espesso e constrangido e Gaspar não pôde evitar um sobressalto no peito, fruto só da pouca habituação a estes andamentos, um carabineiro veio espreitar os passageiros que vêm em turismo, dobrou-se para a minúscula janela, cotejou as caras com os retratos e mandou avançar.

Nada é mais contraditório do que os homens. Passámos a fronteira de França, e sendo isto motivo de particular alívio e geral distensão, a tristeza nos peitos é maior. Estes viajantes deixaram de ter razões de insegurança, ninguém aqui virá saber quem são e ao que vêm, indagar dos falsos passaportes, esmiuçar-lhes um dente irregular no selo branco. Há longos anos tem sido esta terra um local de refúgio de portugueses, dos cladestinos da fome, dos refractários duma comprida guerra, não vai deixar de sê-lo agora para os que doutra guerra escapam. E no entanto cresce a melancolia nestes olhos, passámos a vida a pensar que a liberdade é tudo e enganámo-nos, estamos finalmente soltos e preferíamos não estar, temos o mundo todo à mão e o nosso a ficar-nos para trás, cada vez mais distante.

João é que não esconde o seu contentamento. Procura um restaurante aprimorado, esmera a selecção das vitualhas, pede para nós um beaujolais. O jantar é um consolo para o corpo, a gentileza de França faz o resto. Leva-nos ao comboio, falamos de João que fortemente nos envolve nos braços compridos, antes de dobrar ao fundo a esquina da calçada, uma chuva angustiada cai.

Na vida é como no cinema, conclui Gaspar, preso ainda no relance final do carro branco, insistentemente chove quando alguém se vai embora para sempre. Nos filmes entendemos porquê, na vida não.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

As Aves 4-6

Franco assassino, este era o grito na noite solidária de Lisboa, ouvia-se em Madrid e era verdadeiro, isso bastava. As massas são assim, juntam-se e logo ficam cegas e surdas a vozes da razão, que o turbilhão da ira é uma paixão irrecusável, tão fundo como a raiz da barbárie de que nos erguemos um dia, se dela nos fomos libertando aos poucos, e assim em bando é simples qualquer heroicidade, temos ao mesmo tempo anonimato e luz de palco, mormente se uma oportuna voz nos estiver açulando, sem confessar que para um abismo nos empurra. Tal é o caso desta emissora católica, ocupada pelos trabalhadores em regime de autogestão, como era dito, porém sempre aoserviço da classe operária e do povo trabalhador, isto é o que anuncia o locutor enquanto vocifera dramáticos apelos à luta das massas oprimidas, enquanto incita o povo à revolução aqui e agora, amanhã será tarde, amanhã será tempo de mudar-me de campo e governar a vidinha, amanhã já ninguém lembrará felizmente o que aqui se passou.

Franco assassino, era o que gritava a maré humana que já não cabia na praça, de Espanha também chamada, não viremos a saber se é fé ou delírio o que estamultidão agita, idênticos são uma e outro. E, enquanto estes esgrimem pendões e bandeira vermelhas, já roucos e afónicos das repetidas palavras de ordem, já aqueles pularam o muro e franquearam os portões, de pouco valem os tiros que uns soldados barbudos apontam para o ar, com eles já nós aprendemos que não basta ao cão ladrar. Já subimos a trote a ampla escadaria, feita para os delicados pés dos bastardos do rei D.João, magnânimo como se vê pelo desafogo destes palácios, divina lhes seria a estirpe, mas revolução abençoada é a nossa, que tais portas nos franqueia. Já explodem no ar vidros estilhaçados, e das bocas da janelas voam madeiras partidas e retratos de grão-duques, quiçá espectros de bastardos que uma gritaria assim amedrontou, e cadeiras de espaldar, estantes e reposteiros, sofás de veludo, arquivos, cofres-fortes, tapetes iguais aos da Flandres antiga, e espadas do duque d'Alba, e obras de arte e lombadas de biblioteca, jarrões da Índia, vasos de plantas, documentos diplomáticos, relatórios e memorandos, se não estamos nós a desperdiçar ensejo de aceder aqui aos segredos de Castela, ou da própria terra basca, boa era a conjuntura e não teremos outra, e bonecas sevilhanas, e garrafas de Pedro Domecq. Já espezinhámos com volúpia o retrato do ditador, que fizémos arder neste auto-de-fé, já passaram por nós, sem os termos notado, diversos mariolas com pratas ocultas debaixo das casacas, tudo isto por junto nos custará, não tarda, o melhor de dois milhões, e pior que isso já há tropas espanholas afinando as miras na fronteira da Estremadura, onde estará sediado o quartel-general que lhes traçou a ordem de batalha é coisa que nos fica por saber. E, sem nos darmos conta, desta fumarada foi a revolução que saiu chamuscada, tanto que nós precisávamos dela em boa condição, e foi um pouco mais da nossa liberdade que estas labaredas dissiparam no ar, se Torquemada já cá não está, alguém lhe terá ficado com os novelos.

Pois quem vê caras não vê corações, há séculos que assim é e muito especialmente neste passo, os que são contra a revolução têm mil caras que mostram, e um só coração que escondem. Vejamos este jornal, que se chama O Proletário, parecia que tudo estava esclarecido e não está, que se formos nós além do frontispício e lhe perguntarmos o programa, o objectivo, a finalidade, a linha, a editorial ou outra, ficamos a sabê-lo anti-capitalista, anti-imperialista, anti-social-imperialista, e anti-revisionista, e mais que tudo disposto a combater o trotskismo, e o anarquismo, e o infantilismo de esquerda, e o ultra-esquerdismo, o revolucionarismo verbalista e o radicalismo pequeno-burguês. Assim tão contra tudo, fica-nos por saber se estará ele a favor de alguma coisa, não vimos aqui o fascismo citado. Porém, não cedendo nós à repentina e cínica descrença, afinal o descobrimos solidário com as teses do congresso dos comunistas chineses da revolução permanente, um dia viremos a saber o que isso foi, e também com as teses do congresso do partido do trabalho da Albânia, um país adormecido à beira do Adriático, para que não souber.

Albânia é também o cognome por que se está dando a conhecer o liceu Pedro Nunes, em Lisboa, mais que todos a escola da boa gente da Estrela, e dos filhos-família da Lapa, e dos meninos da avenida Infante Santo, chama-se Albânia e já levou à rendição dum directório militar, que deste modo evitou baixas maiores, é este um fenómeno exemplar e nunca visto, sem querer voltámos à guerra das bolanhas da Guiné, as armas e os caranguejos é que não são os mesmos. Em vão perguntamos nós o que ligará uma coisa à outra, a Albânia a esta gente que sempre nadou em privilégios, e esta gente à mísera Albânia, recôndito lugar que ninguém sabe onde fica no mapa. Em vão fazemos nós perguntas que nos ficam  no ar, pairando no espírito perplexo, tanto tempo levamos a perceber e de tão pouco dispomos. E um dia vem Gustarino lá de longe, escapando do ensanguentado Chile, oxalá venha ele a tempo de nos mostrar o que a sua terra tem vivido, se nos servirá de exemplo, o povo não imagina do que são capazes as classes poderosas, quando se trata de manter ou restaurar privilégios e mando. (Cont.)