sábado, 20 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 21

Voaram durante seis horas, as asas fatigaram-se. E quando poisaram para descansar era ainda muito escuro. Agora deslocavam-se pouco durante o dia. Mas, logo que o sol se punha, o maçarico conduzia a fêmea para as alturas do céu e encaminhava-se sempre para Noroeste. A cada noite as asas ganhavam força, e, uma semana depois, voaram sem parar, do pôr-do-sol até à madrugada.
            E assim continuaram, o macho sempre à frente e a fêmea um pouco atrás, arrastada pelo turbilhão numa das pontas da asa. Na escuridão falavam continuamente, enviavam-se pequenos sinais, um pouco mais fortes do que o rumor do vento cortado pelo voo. E o macho foi esquecendo lentamente a sua antiga solidão de sempre. Encontravam muitas tarambolas. Mas os dois bastavam-se a si próprios, e a sua relação preenchia-os tão completamente que nunca se juntaram a qualquer bando. A maior parte das vezes voavam sozinhos.
            A rota do Norte diferia da rota do Sul. Deixaram para trás as Pampas e a zona dos ventos de Oeste. Agora tinham por diante as regiões florestais do norte da Argentina, onde não era fácil encontrar comida. Oitocentos quilómetros a Oeste ficava o Pacífico e as suas praias, mas pelo meio erguia-se a cadeia dos Andes. Chegaram à zona dos alísios de Sueste. Para terem vento de lado, teriam que voar para Nordeste ou para Oeste. Podiam escolher entre as selvas infindáveis do Brasil, onde quase não havia alimento nem lugar onde poisar, em 2500 quilómetros. Ou então as alturas dos Andes, com a sua atmosfera instável e rarefeita. Instintivamente o maçarico rumou a Oeste.
            Durante uma noite inteira voaram sobre contrafortes montanhosos cada vez mais altos. Hora após hora foram subindo, até as asas vibrarem de cansaço. De manhã poisaram num planalto coberto de ervagem densa. A terra ondeava sem fim diante deles, ondeava subindo, até onde a vista alcançava. O horizonte parecia uma folha de serra. Nuvens brancas e cumes nevados fundiam-se uns nos outros.
            Logo que o sol mergulhou atrás dos Andes, os maçaricos reiniciaram o voo. Avançavam lenta e penosamente, uma vez que tinham de ir subindo sempre. O ar tornara-se rarefeito, oferecia às asas menor sustentação e menos oxigénio aos pulmões sobrecarregados. Eles eram aves de planície, e não possuíam os enormes pulmões dos lamas e seus pastores índios, que possibilitam a vida a cinco mil metros de altitude. Em breve ficaram cansados. Algumas horas antes do amanhecer poisaram, esgotados, na saliência duma falésia. Uma escassa camada de líquenes e musgos tinha-se agarrado à rocha. Descansaram ali o resto da noite, encostados um ao outro, defendendo-se das rajadas do vento cortante.
            Caiu a luz da manhã sobre um mundo áspero e desolado. Falésias cinzentas e pedaços de nuvens em movimento, que pareciam asas brancas de um vento eterno. E ainda não tinham atingido o ponto mais elevado. Os cumes que agora tinham de ultrapassar estavam escondidos atrás de massas de nuvens agitadas. Em nenhum outro lugar do mundo, salvo nos Himalaias, se encontram altitudes tão elevadas.
            Mas mesmo aqui viviam insectos, e os maçaricoes puseram-se à procura de alimento. Era uma operação lenta e difícil, não por haver pouco alimento, mas porque cada movimento era extenuante, exigindo muito oxigénio. À noite o ar arrefeceu rapidamente. Começou a nevar e eles não retomaram o voo. As turbulências atmosféricas e as enormes barreiras de falésias e glaciares só podiam ser ultrapassadas com a luz do dia.
            Nessa noite não puderam dormir, e quase não descansaram. O vento rugia estridente contra a parede da falésia e empurrava os duros flocos de neve. Por momentos, mal se conseguiram resguardar. Então uma poderosa rajada retirou-lhes o chão debaixo dos pés e arremessou-os na escuridão, no medonho vazio do espaço. O macho lutou, defendeu-se, retomou o controlo das asas e poisou. Mas a fêmea tinha desaparecido.
            Desesperado, tentou gritar mais alto que o rugido da tempestade. O vento não trouxe qualquer resposta, para além dos seus próprios gritos. Quando este amainou o maçarico levantou voo, descreveu pequenos círculos a baixa altitude, gritou, e procurou, e gritou em vão. O vento cresceu de novo e ele não pôde manter-se em voo. Agarrou-se aos musgos da falésia e esperou, sem respiração. A tempestade amainou por um momento e ele voltou a levantar voo, mas a sua resistência acabou rapidamente. Não podia continuar. Então encontrou um buraco na falésia que o defendeu da tempestade. Encolheu-se lá dentro, arfando, de bico aberto. O corpo precisava de oxigénio. E quando retomou forças voou de novo pela noite escura e bravia, descreveu círculos e gritou pela fêmea. Torturava-o a antiga solidão.
            Encontrou-a uma hora depois. Tinha-se escondido da tempestade por baixo duma saliência de xisto, na falésia, e estava tão perturbada e exausta como ele. Encostaram-se um ao outro, e o calor dos seus corpos derreteu um pequeno círculo de neve granulosa.
            Pela manhã o vento amainou. O macho sabia que tinham de continuar a voar, não podiam ficar ali mais tempo. Quando as nuvens carregadas de neve se dissolveram e o sol atravessou a névoa com uma luz amarelada, levantaram voo e avançaram para o manto que ocultava os cumes. Um minuto depois encontravam-se num mundo fantástico de neblina branca, cuja humidade lhes pesava nas penas. Subiam penosamente, em círculos. Tinham de ganhar altitude, mas o ar era agora tão rarefeito que pareciam mover-se no vazio. Mesmo com os pulmões cheios, respiravam com dificuldade.
            A camada de nuvens era muito instável e cheia de turbulência. Ocasionalmente encontravam camadas de ar mais denso, que as asas cortavam melhor, e ganhavam altitude rapidamente. Mas logo o ar se rarefazia, e, por momentos, mal se podiam manter. Uma vez clareou por cima deles, e o maçarico sabia que estavam perto de atingir o céu claro. Mas, antes de conseguirem furar as nuvens, uma rajada descendente arrastou-os consigo. Caíram desamparados, e perderam em poucos segundos a altitude que lhes levara muito tempo a ganhar.
 (Cont.)