quinta-feira, 18 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 20


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            A chegada da fêmea foi um ponto culminante estranhamente desdramatizado, depois de uma vida de eterna espera. O maçarico estava no meio de algumas tarambolas, junto à água, e procurava alimento. De repente a fêmea estava ali! Tinha poisado a menos de um metro de distância, e ele podia observar-lhe cada pena da plumagem. Chegara com mais nove tarambolas. Silenciosamente tinham-se deixado planar sem que ninguém as notasse, salvo uma tarambola que se mantinha alerta às aves de rapina, enquanto as outras comiam. A fêmea fechou vagarosamente as asas, num movimento mais gracioso que o das companheiras. E voltou para ele o longo bico recurvado.
            Ela pulou então sobre as altas pernas esverdeadas, e saiu-lhe da garganta um gorjeio suave. Ele pôs-se também aos pulos e respondeu baixinho.
            Reconheceram-se sem reflectir, num súbito processo intuitivo. O macho sabia que se tinha enganado muitas vezes, sabia que os maçaricos-norte-americanos, confusamente parecidos, passavam o Inverno muito mais a Norte, no mar das Caraíbas. Aqui, no Sul profundo, ele só encontraria maçaricos da sua espécie. Este era mais pequeno do que os outros, e de um castanho mais claro, tal como ele próprio. Na verdade, os seus pensamentos eram fugidios e informes. Mas a voz, a atitude, os movimentos da outra ave, mais do que o seu aspecto, disseram-lhe imediatamente que a sua fêmea chegara.
            Nunca tinha visto um companheiro da espécie, e a fêmea provavelmente também não. Ambos tinham procurado, na América do Norte e do Sul, sem saberem exactamente o quê. Mas, logo que o acaso os juntou, o instinto velho de gerações permitiu-lhes reconhecerem-se sem qualquer hesitação, uma vez que o maçarico tinha sido uma das aves mais difundidas em toda a América.
            Durante um minuto ficaram ali imóveis, espreitando-se e saltitando. O macho estava excitado de contentamento. Finalmente podia calar o seu desejo da fêmea, que durante a vida inteira fora surgindo e desaparecendo, sem nunca ter sido satisfeito. Um pequeno caracol rastejava à sua frente, na água baixa. O maçarico partiu-lhe a casca com uma bicada, mas não o comeu. Com o pescoço esticado e a plumagem tufada pavoneava-se em frente da fêmea. Constrangido e algo desajeitado, chegou-se junto dela e ofereceu-lho. A fêmea, com as asas um pouco abertas e todo o corpo a tremer, aproximou-se dele. Picou o caracol e engoliu-o de imediato.
            O macho alimentou a fêmea, apresentou-se como companheiro e a fêmea aceitou-o. E assim começou o jogo nupcial. Nenhum deles mostrara qualquer excitação exterior, qualquer alegria exibicionista. O macho deu o caracol à fêmea, esta recebeu-o, o casamento estava selado.
            Agora cada um procurava alimento para si próprio, sem prestarem atenção um ao outro, embora se mantivessem próximos. E, mais que nunca dantes, o macho sentia-se atraído pelo montão de pedras, junto à curva do rio, na tundra distante.
            Levantou voo quando chegou o crepúsculo, circulou sobre a fêmea e chamou-a. Ela lançou-se para o ar e voaram juntos para o interior, sobre as elevações que bordejavam a costa. Depois do escurecer poisaram numa encosta atapetada de ervas e dormiram um junto do outro, os pescoços quase se tocando. O macho sentia-se renascer, uma outra vida tinha começado.
            Ao romper do dia regressaram à praia. Depois foram voando rapidamente para Norte, cerca de quinze quilómetros em cada etapa. De vez em quando faziam pausas para comer, mas a tundra chamava, cada vez mais urgente. Cada dia que passava voavam mais longe e comiam menos do que na véspera. No princípio de Fevereiro estavam já a 1600 quilómetros do ponto de partida. E como sempre, na viagem para Norte, paravam nos charcos à beira-mar. Era primavera, e as gónadas produziam cada vez mais hormonas sexuais, que lentamente faziam crescer a sua excitação. Muitas vezes o macho interrompia bruscamente a busca de alimento, e pavoneava-se em frente da fêmea como um galo de combate, com a plumagem do pescoço tufada e as penas da cauda emplumadas em leque sobre o dorso. Então a fêmea inclinava-se, de asas frementes, e pedia comida como se fosse um pintainho. O macho oferecia-lhe um petisco, os seus bicos tocavam-se, e com isso terminava o jogo nupcial.
            Uma noite, quando um forte vento de Oeste soprava sobre os montes junto à costa, voaram terra adentro, como habitualmente. Mas desta vez o macho subiu mais alto do que era costume. Seguiu Pampas adiante, e, quando a escuridão caiu, continuaram a voar. As etapas diárias que tinham percorrido eram curtas, e já não satisfaziam o impulso migratório cada vez mais urgente. Deixaram a costa para trás e voaram para Noroeste, na direcção dos Andes. O macho sentiu diminuir a tensão, ao reconhecer, com a primeira noite, que a migração tinha de facto começado.
(Cont.)