quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Pura literatura

A arte literária é criatividade, não é uma teimosia amanuense. E se um texto não desvela temas novos - que os não há - basta-lhe contar o trivial quotidiano de forma nunca vista.
Menos que isto é tudo verbo de encher, que apenas provoca sono e formata imbecis.

O meu irmão está deprimido

Não, não é uma pessoa qualquer que vem ter consigo na rua e lhe diz que está deprimida. É o meu irmão, e quer suicidar-se. E foi precisamente a mim que o veio dizer. Porque é de mim que ele gosta mais, e eu dele, mas já viram a prenda?!
Eu e o meu irmão mais novo estamos ambos no jardim da rua Sheinkin, e o meu cão, Hendrix, está a puxar pela trela com toda a força, a tentar morder a cara dum miúdo vestido com jardineiras. E eu, com uma mão luto com Hendrix e com a outra procuro o isqueiro no bolso. «Não faças isso», digo ao meu irmão. O isqueiro não está em nenhum dos bolsos. «Por que não?», pergunta o meu irmão mais novo. «A minha namorada deixou-me por um bombeiro. Odeio os estudos na Universidade. Toma lá lume. E os meus pais são as pessoas mais desgraçadas do mundo.» Atira-me o cricket dele. Eu apanho. O Hendrix foge. Salta sobre o garoto de jardineiras, atira-o para a relva e fecha as aterradoras mandíbulas rottweilerianas na cara dele.
Eu e o meu irmão tentamos separar Hendrix do garoto, mas ele obstina-se. A mãe do jardineiras põe-se aos gritos. O miúdo, pelo contrário, está estranhamente silencioso. Dou um pontapé a Hendrix com toda a força, mas ele nem se mexe. O meu irmão encontra uma barra de ferro na relva e dá-lhe com ela na cabeça. Ouve-se um horrível ruído de explosão e Hendrix cai para o lado. A mãe grita. Hendrix arrancou o nariz ao miúdo. E agora morreu. O meu irmão matou-o. E para além disso ainda se quer suicidar, porque a traição da namorada com o bombeiro parece-lhe a coisa mais humilhante do mundo. A mim a profissão de bombeiro até me parece bastante digna, salva pessoas e tudo o resto. Mas do ponto de vista dele era melhor ela ter fodido com o carro do lixo. Agora é a mãe do miúdo que se atira a mim, a tentar arrancar-me os olhos com as unhas compridas pintadas de verniz branco repugnante. O meu irmão levanta a barra de ferro no ar e dá-lhe também uma pancada na cabeça. Tem o direito, está deprimido.