terça-feira, 29 de maio de 2012

Duas cabras e um frontão

(...)
O tempo do viajante é que é um tirano. E foi um Camilo complacente que o poupou a embaraços e encurtou a retirada. De ânimos o seu tanto quebrantados, ainda trepou às congostas de Castelo Rodrigo, onde foi ouvir dizer que o assanhado povo deixou nesta ruína o palácio do Cristóvão de Moura, quando os Filipes se foram. Diz-se que chegaram mesmo a inverter-lhe o brasão. O viajante discorda, mas não faz alegações. Abandona-se à paisagem e aos cambiantes que há nela, antes de baixar para ver a igreja do Reclamador.
Hoje alberga um São Sebastião que já tem quinhentos anos. E há mais de mil era hospício de romeiros exauridos, como este fatigado viajante, que ainda assim se compraz num Mata-Mouros garboso, e que uma devota não deixou filmar porque ao pobre do corcel já falta uma orelhita. No final houve um paisano que o trouxe à realidade com a história do Colmeal.
Abrigada numa dobra da Marofa, num ângulo de ribeiros que se despenham da encosta, a aldeia do Colmeal foi durante séculos um feudo dos Cabrais. Os donos foram-se ao mar, mas as cabras do brasão lá ficaram até hoje, pintalgadas num frontão.
Depois vieram morgados e burgueses, que ficaram gerações. E em 1957, ao fim de grandes enredos que ninguém sabe explicar, tudo acabou na ruína, a mando dum tribunal. Para cumprir as ordens dadas foi a aldeia posta em guerra, e os servos dela corridos à sabrada por um esquadrão de cavalos. Desde então ficou deserto o Colmeal, é um salto daqui lá pela escamungada fora, na direcção de Pinhel.
Não há-de ser de fiar uma estrada com tal nome, ainda alega o viajante. Mas desta feita não tem por onde escolher. Disse adeus ao companheiro, confiou-se ao Mata-Mouros e lá foi.
Toda a vida suspirou o Colmeal por uma estrada que valesse o nome. Mas foi preciso perder a vida inteira para ganhar a que hoje tem, ainda novinha em folha. É mesquinha e encurvada, ao modo de antigamente, mas ganhou um risco ao meio. E o máximo risco dela é vir a ser uma estrada para toda a eternidade, se não há ninguém que a gaste, nem pés de gente que por ela fora vão, a inventar-lhe destinos mais humanos. À entrada do povoado ganha luxos de granito, conforme se usa hoje em dia. E tem ao cabo dele uma rotunda, onde um qualquer andarilho há-de fazer volta-atrás. Não chegaram ainda os fins do mundo, mas a estradinha acabou.
Assim fez o viajante. Entrou a medo na igreja, onde apenas sobrevive mais um o S. Sebastião, andou por ruas que precisou de inventar, até dar com as cabras no frontão. Fez ele bem em vir e reparar, porque uma delas é bode, conforme a vida comanda. É mesmo a única coisa que vem a bater certo neste Colmeal, se às abelhas roubaram os cortiços, e as próprias flores das estevas inutilmente floriram nuns terraços que além estão.
Ao viajante agradava-lhe sentar-se no meio delas e ficar. Mas também chegou a sua vez de partir do Colmeal. (...)