E sobre o mais continua Portugal a arder, é sul e é norte, razão tinha o monsenhor. Será deles a culpa, centenas de sedes comunistas são incendiadas por todo o país, em Famalicão cai o primeiro morto, algumas dúzias mais hão-de cair. Rebentam bombas em Pinhel, nas ilhas, em Lisboa há carros destruídos, casas, instalações, de todas a maior bomba é roubarem os bombistas o tesouro de Santa Maria da Oliveira, será tudo para glória de Deus. Os mutilados do império cercaram a assembleia de São Bento, este largo é uma floresta de muletas e de pernas de pau, aqui se tornam máquinas de guerra as cadeiras de rodas, tanto tempo escondidas, faça-lhe a conta quem dúvidas tiver. O Secretariado Nacional Provisório pró-Conselhos Revolucionários de Trabalhadores Soldados e Marinheiros apela à dissolução da Constituinte, e alguma voz promete, o nosso Outubro chegará também. Chega não chega, pedem os operários desta fábrica têxtil o regresso do patrão, e o general do olho de vidro ameaça atacar o Alentejo dentro de três semanas. A norte e a sul colunas de estrangeiros garroteiam Angola, e cinco mil cubanos aguentam Luanda a poder de metralha. A popa do império afunda-se no mar como um Titanic, Dili está a ser arrasada, e o governador de Timor pede a Lisboa médicos, enfermeiros e remédios, em desespero pede a Lisboa os meios que nunca virão, para salvaguardar as próprias tropas. Trinta mil manifestantes assaltam cinquenta autocarros da Carris e rumam à Trafaria, a libertar dois soldados presos. Meio milhão de punhos erguidos encurralam em São Bento deputados e governo, são operários da construcção civil que vieram de longe à procura dum czar, à procura dum palácio de inverno, mas já vão desistindo porque nem um nem outro acharam, e é um Aljube novo que aqui foi ensaiado, para alguém há-de servir. A Renascença é dinamitada por ordem superior, o governo suspende actividades por falta de condições, Carlucci já reuniu um grupo de militares e partiu para a América, os dados estão lançados. (Cont.)
quinta-feira, 12 de junho de 2025
quarta-feira, 11 de junho de 2025
As Aves 6-8
Técnicos soviéticos trabalham num veículo capaz de rodar a mil e duzentos quilómetros por hora, não descansam enquanto não vencerem o recorde americano de velocidade em terra, e assim já não terão demora no caminho as mães da Rússia que viajam entre a praça Pushkin e o mausoléu de Lenine. A ilha de São Tomé festeja o levantamento de Fevereiro de cinquenta e três, o tal que terminou com centenas de negros mortos, no cais do Pidjiguiti foi em cinquenta e nove. Trinta mil camponeses sem trabalho ocupam terras incultas da Casa do Cadaval, e do latifúndio de Alcácer, e da herdade da Chaminé. Os comunistas são expulsos das ilhas do Atlântico, ao pontapé, à bomba, que estes são domínios predilectos da América e a América não dorme. Uma estátua de bronze apareceu esta manhã decapitada e Santa Comba Dão, e cinquenta polícias, que estavam barricados nesta esquadra de Setúbal, são evacuados para Lisboa em carros de assalto. O general do olho de vidro busca refúgio em Talavera la Real, depois do ataque aéreo a um quartel de Lisboa.
Devido à situação difícil em que se encontra o jardim zoológico, os ursos atingiram um estado de magreza considerado anormal. Há ainda três milhões de analfabetos, de homens aqui falamos, não dos ursos, se a uns e outros alguma coisa valerá a esforçada pertinácia das brigadas da juventude em Chaves. No Porto, entre estudantes, estão hoje Beauvoir, e Sartre, e Foucault, e esta foi a assembleia mais muda, se não a mais ignorante, que alguma vez encontrei. A morte do homem e a ideologia capitalista são o tema da noite, as ocupações e a autogestão as soluções para o mundo, e as eleições que aí estão uma ratoeira para idiotas.
Os últimos americanos fogem da hecatombe de Saigão, e os camponeses de Alcoentre ocupam o maior latifúndio a norte do Tejo, não sem razão lhe chamam Torrebela. É um condado de oito mil hectares, jóia primeira da casa de Lafões, que de outras dispõe na Azambuja, na Golegã, em Angola e na ilha de São Tomé, nem todos afinal se queixarão do tal funesto império. Só este paço é um labirinto, que entre salões e quartos privados contamos nós cinquenta, é nosso quanto desta janela a vista alcança, o próprio horizonte nos pertence, vedado em redor por aquela muralha da China.
A Torrebela senhoriou durante séculos duas freguesias que lhe cabem lá dentro, em vida do senhor duque dava pão em troca de suor, ressalvados os dias do ano, frequentes de ver, em que um homem se via rejeitado pelo capataz na praça da jorna. Só bois de trabalho eram cinquenta juntas, veja a força que ali estava, sem contar agora os gados miúdos que amalhavam em estábulos e currais. Por estas máquinas a desfazer-se em ferrugem, por estas forquilhas, e charruas, e malhos, e ancinhos, e serrões, e apeiros, e cagas a apodrecer por aí em telheiros e arribanas, por estes petrechos e armamentos de abegão e maioral, por aí se pode ver a riqueza que isto não era. A ruína e a fome vieram depois que o velho duque faleceu. Desavindos os herdeiros, deixou de haver amanho das culturas, é tudo por aí uma praga de eucaliptos, no lugar dos gados só se topam gazelas, e corças, e veados, a pastar por onde calha. De forma que fizemos uma reunião e mandámos vir as Forças Armadas, esteve cá um capitão e outros da cavalaria, onde nos disseram que ninguém pode ficar à espera que saia a lei para ocupar as terras. Primeiro ocupa-se a terra, a lei virá um dia, na revolução é assim.
Mas é penosa, esta revolução.Que o digam as velhas camponesas de Maçussa, mal entram nos aposentos da duquesa e logo as rudes vozes se tornam balbucio, parece que violaram o santo dos santos e rasgaram o véu que preservava Deus. Têm nos olhos uma estranha culpa, será isto o pecado original, e os quebrantados membros a custo sujeitam baús e gavetões. Penduram ao peito vestes a atavios, miram-se no cristal do espelho, é isto um baile de mascarados a jogar ao sisudo, riem só quando um maltês vem da capela, de batina e sobrepeliz, a distribuir à mão absolvições gerais. Mas já entrou um maioral zabgado que expulsa toda a gente, o baile terminou.
A proa do império afunda-se no mar como um Titanic, Angola está a ferro e fogo, há guerras e mortandades por todo o território. Estes são os tempos terminais, já anda à solta a besta monstruosa, brancos e negros largam terras e haveres, empilham-se aos milhares nos cais, a ver se escapam aos fogos cruzados, aos ódios, às traições. Se não há porto de embarque fogem num desvario, para o sertão, para o nada, assim visto de cima parece aquilo uma serpente de lata a arrastar-se na areia e são afinal cinquenta quilómetros de jipes, furgonetas, camiões, limusinas, caravanas, tractores e catrapilas carregados de gente, carregados de mobílias coxas, carregados de sobas de pau preto e edredões de gazelas, e esta é a picada que nos há-de levar à fronteira das terras do fimdo mundo. Somos dez mil e havemos de chegar. Virão dilúvios de água e tórridos calores, os pés hão-de lavrar nos lamaçais dos rios, morder-nos-ão no rosto as madrugadas álgidas e havemos de chegar, porque nenhuma história fica suspensa a meio, ninguém pode torcer as leis do mundo. Quem saiu entrará, regressará um dia tudo quanto partiu. (Cont.)
segunda-feira, 2 de junho de 2025
As Aves 6-7
Consta que há membros do congresso americano chocados com a revelação de que a CIA interferiu na política interna do Chile, estes são assim, chegam tarde mas vêm sempre. O que não dizem, por enquanto, é que a CIA financiou quarenta e cincodias de greve dos camionistas chilenos, e pagou a provocadores, e organizou a manifestação das panelas vazias, e armou os assassinos de Pratts na Argentina, e de Lettelier na América, um dia di-lo-ão, quando já ninguém precisar de o saber.
Pois quem espera desespera, que o digam estas oitenta família dos campos de Loures, à espera duma casa desde as cheias de mil novecentos e sessenta e sete, só hoje ficamos a saber que morreram então quinhentas pessoas na região de Lisboa, não costumamos ouvir a BBC, é pena. À espera está também uma boa metade da população portuguesa, pois sendo numa casa, ou num singelo pardieiro, vive sem energia eléctrica, bem se diz nesta conferência da FAO, em Roma, que a subnutrição, ou simples fome, e o baixo rendimento, colocam Portugal entre os países menos desenvolvidos. Não vamos mais longe, acompanhemos ao Sintrão estas equipas duma brigada militar que está a rasgar uma estrada, e logo veremos que não há diferença entre isto e um qualquer lugar dos fins do mundo. No Sintrão não há torneiras de água, nem lâmpadas de luz, muito menos uma rede de esgotos, que escorrem a céu amplo pela rua, e ajudam a curtir os estrumes de inverno. A estrada antiga é um simples caminho de terra, uma picada do mato por onde as crianças vão à escola a Castaíde, três quilómetros para lá deste monte, que bem lhes faz o arzinho das manhãs. Pior estão, sem se queixar, os mortos, que têm de palmilhar uns bons cinco quilómetros, até acharem sossego final no campo santo de Rio de Moinhos. Na sua maioria analfabetos, não estão melhor os vivos que sobraram, todos velhos, quem tinha dez reis de alento fugiu para a emigração. Um dia o povo do Sintrão juntou economias e fez uma capela, o padre, porém, não aceita frequentá-la, por causa da porta, que não está de arco. E não há volta que se lhe possa dar. Não a deu a Senhora de Fátima nem a darão os pobres militares, santos de pau de amieiro que toda a gente invoca, nestes tempos. Nem com estradas novas, nem com redes eléctricas e pontões sobre as ribeiras, nem com palavras de cidadania, que estas campanhas são pagas pelos comunistas, os tais que virão atrás para nos roubar as hortas, não tarda nada e serão destruídos todos os cartazes que animam as tristes paredes.
O embaixador Carlucci, que oficiou no Chile, declara que a CIA não está em Portugal, não nos preocupemos, só ele basta. Anda em viagem discreta pelo norte, enquanto liberta empréstimos em dólares, já percebeu que está nos socialistas o cavalo em que apostar nesta contenda, e assim mata dois coelhos com o mesmo cajado. Dum único passo encurrala os comunistas, que são o mal supremo, e livra do pesadelo a América profunda. E já esfrega, de contente, as mãos, metade do apís está a ferro e fogo, o estudantil e o outro, há mobilização geral de matracas, barras de ferro, correntes de bicicleta. Há greves nas escolas de Lisboa, de Almada, da Covilhã, de Bragança, de Abrantes, de Chaves, do Porto, de São João da Madeira, de Santarém, de Viseu, do Barreiro. O ministro da educação já cedeu o lugar a um major da tropa, demitido a seu tempo por ter casado com uma espanhola sem autorização superior. Foi-se o ministro porque uns tantos tudo pretendem demolir e levar ao caos, porque o trabalho e o saber são hoje em dia valores burgueses, porque ao fim de quarenta e cinco anos de opressão exigem tdo agora, e já, e aqui.
Aqui também se pode ver o estado a que chegámos todos. Sobem estas mulheres o parque Eduardo VII, são feministas em guerra, e vão fazer o auto-de-fé dos símbolos da vassalagem ao macho, dois corpetes, um avental, brinquedos das meninas, revistas pornográficas. Em boa verdade, não escasseando aos homens estandartes de luta, menos carecem estas mulheres de bandeiras e pendões. Mas já milhres de basbaques ocupam lugar no relvado, à espera de entrever a maminha descuidada, nem todos os dias nos trazem a emoção radical dum espartilho a arder. E em breve se acham estas mulheres no meio duma massa que as empurra, e as agride, e lhes levanta as saias, e lhes molesta as carnes íntimas. É isto um delírio de barbárie indescritível, tão funda como um instinto negro que chega da origens dos tempos, há mulheres arrastadas para as poças de lama, e homens de carcela aberta exibindo falos tumefactos, maior que esta amargura só a vergonha de não ter nascido cão. (Cont.)