sábado, 28 de setembro de 2024

As Aves 3-2

Voltam não voltam, este é o momento que aos veros salteadores de todas as histórias mais arranjo faz, descem ao meio da praça e põem-se a gritar ao mundo inteiro, agarra que é ladrão. Havia assaltos a partidos, defenestrações de trastes e cartazes, exigências de interdição dos comunistas. Rosnavam-se punições e vindictas, como já noutro local foi dito, e era disso que afinal se tratava vindo a apurar-se a boa verdade, era de vingar a agitação e o susto que o último ano e meio provocara, era de punir esta ousadia a um povo de tão cordatos hábitos, e o alvoroço que nos trouxe nas vidas, mais do que o prejuízo, finalmente já não temos que fingir, que a despeito dos sinais em contrário sempre fomos democratas, que sempre estivemos ao lado do povo e não a cavalo nele, e que, com algumas faenas a preceito, também nós estivemos com a malfadada revolução.

Gaspar, que ainda o não era, como estamos lembrados, ouviu mais do que disse nesse encontro, a ele cabia a última palavra, colheu opiniões. Havia turbas de prisioneiros encarcerados, faltava saber que sorte os esperava, e com que normas viriam a ser julgadas tantas acusações, chegando a sê-lo, a memória de todos, antiga e mais recente, estava cheia de casos pouco recomendáveis. Gaspar teve medo e foi viver para Benfica, num largo poeirento paravam autocarros, do décimo andar via-se por inteiro o telhado velho duma capela antiga, entre duas palmeiras.

Contra ordens recebidas, que desaconselhavam idas à rua e proibiam todos os contactos, telefonou à mulher, às vezes se encontraram, noites houve emque dormiram juntos, alguém virá larçar-lhes a primeira pedra. Na insegurança em que ela se achava, pensava Gaspar, não podia deixá-la ao desamparo, no desconhecimento de tudo, havia que garantir-lhe meios de vida, o salário em breve seria suprimido.

Passaram alguns dias e estava demitido, exonerado, a palavra dirá que estava liberto de pesos quando afinal os ganhou novos, apeado estaria se houvesse aqui montada e cavaleiro, ou deposto sendo príncipe reinante, mas Gaspar não passa dum plebeu, abatido por deserção foi o seu simples caso, e palavras há de peso esmagador, mesmo sendo o que são, meras metáforas. E porque em dois meses lhe não chegaram notícias que o tranquilizassem, e andavam ainda frescas as lembranças trágicas do Chile, nunca se apresentou à porta da prisão e decidiu partir, chegada que foi a manhã de Fevereiro que já presenciámos. (Cont.)

terça-feira, 17 de setembro de 2024

As Aves 3-1

Não há, porém, sol que se levante sem primeiro se pôr, e isso é justamente o que acaba de suceder com esta fraca luz de finais de Novembro. A noite vai-se apoderando da paisagem, vai dissolvendo ruas e pracetas, enquanto sobe lenta as ladeiras do bairro. Esperando por isso andou Gaspar a tarde inteira, doem-lhe os pés cansados de pisar o tempo, doi-lhe na alma este abandono, e no estômago alguma fome. Volta a bater à porta que já conhecemos, prolonga uma insistência vã, e aventura-se por fim a lançar mão dum telefone. Um amigo virá apanhá-lo no bairro, à esquina da fábrica velha, e não há qualquer mistério nestes códigos, o caso é que só quem ali viveu antes de o quarteirão antigo ser demolido e urbanizado, só quem saboreou os almoços à sombra do telheiro,nas tardes de domingo, os poderá entender. Gaspar é assaltado por recordações que apenas o tornam mais vulnerável, seria agora caso para lembrar aqui velhas fraternidades, vindas do tempo do colégio, quando a rebeldia ensaiava os primeiros passos e o entendimento do mundo abria lentamente o seu caminho, antes de a vida ter começado a despachar cada um para seu lado, este para a guerra de Angola, aquele para Coimbra, algum para onde foi possível, e isso é o que faríamos se não tivessem surgido ali à esquina os faróis amarelos de que estávamos à espera.

Nessa noite se juntou o grupo e se fez a análise da situação, era assim que se dizia, havia quem tivesse informações do partido e nãose duvidava de que eram as melhores, decidiu-se que o mais prudente era ficar algum tempo a ver em que paravam as modas. Anda no ar uma grandíssima fuzilaria contra os conjurados traidores, com pedidos de denúncia e captura, veremos em breve que nem só de exercícios verbais se trata, este alarido de botas da tropa na escada de madeira é duma força de milicianos que às três da manhã sobem ao terceiro andar onde Gaspar morou, range alguma tábua carcomida e há alvoroço na vizinhança, e levam nas mãos verdeiras armas de guerra enquanto passam revista a esta sala e àquele quarto, vê debaixo da cama e abre-me esse armário, vai tu à copa e à cozinha, e ao sair, de armas em bandoleira, nenhum deles soprou no cano da espingarda porque não chegou a usá-la, os dois garotos estremunhados nas camitas não lhes pareceram inimigo à altura. Mas eles voltarão. (Cont.)