sábado, 22 de outubro de 2022

Felisberto

(...) E o viajante já está de partida quando chega Felisberto, a cavalo numa espécie de lambreta, barulhenta e minúscula.

- Há-de-me ver isto, mestre Fernando! Vejo-me grego para a pôr a trabalhar, passa a vida a tossir.

O nome de Felisberto não lhe diz com a fachada. É um homem seco, nervoso, tem um ar atormentado, e a cortesia dos gestos não disfarça o sobressalto íntimo em que parece tropeçar. O mestre promete que ainda hoje tira as tosses à lambreta. E o viajante, é ao que anda, vai conversar com Felisberto para a sombra dum castanheiro.

O homem não esconde a vontade de falar das suas vidas, pouco terá ocasião de o fazer. Ora o viajante, médico não sendo, sabe da própria experiência, o poder milagroso das palavras, mormente se outro remédio não houver. Há anos está Felisberto reformado da polícia e agora vive aqui na aldeia. Sempre  é ambiente mais favorável ao seu génio sobressaltado.

- Tudo isto são nervos! - resume Felisberto, que pouco mais sabe explanar dos seus padecimentos. Embora saiba muito bem que tudo ficou assim desde as guerras de Angola. Um dia, em 70, acabado de chegar a Luanda, meteram-no com mais dois colegas num avião que os deixou em Serpa Pinto. De lá seguiu numa coluna militar para o Baixo-Longa, e depois para o Cuíto. Atravessaram o Kuando-Kubango e ao cabo de dois dias chegaram a Mavinga. Luanda ficara a dois mil quilómetros, e isso pouco era, comparado com a distância a que deixara a mulher e um filho, em Alcabideche, do outro lado do mar via-se a Trafaria. 

Mas o guarda Felisberto não se quedou por aqui, o seu destino final era mais longe. E ainda faltava outro tando de viagem até ao posto policial e fiscal do Rivungo, na fronteira da Zâmbia. Era lá que o império precisava dele, para enquadrar as milícias dos quimbos, e para controlar as populações de que o império era feito.

O viajante não entende muito bem o que isto quer dizer, não sabe como se enquadram milícias, nem imagina como é que estes três homens vão controlar as populações dum império. As palavras são de Felisberto, o viajante limita-se a ouvi-las e a guardá-las na memória.

Ali viviam os três guardas num barracão de adobe e telhado de zinco, perdidos num mar de capim, quando iam ao rio espreitar os jacarés levavam em bandoleira a Mauser de repetição, que era tudo o que tinham por companhia. De horas em quando vinha uma coluna e deixava latas de salsichas, uns fardos de arroz e sacos de farinha, de que eles faziam pão numa fornalha de barro.

Felisberto não era nada feliz naquele mar de areias verdes onde a vista se perdia, mas aguentou sete meses. Até que o apanhou um ataque fatal de paludismo, mesmo ruim, e uma paralisia facial que o deixou de cara à banda. O viajante não compreende como é que o paludismo e a paralisia se juntaram assim, mas Felisberto também não sabe explicar. 

Lá foi um dia evacuado Para Serpa Pinto, numa passrola de quatro asas que aterrou na picada. Dali apanhou uma camioneta para Nova Lisboa, e depois outra para Luanda, onde acabou por chegar ao fim duma eternidade e com menos de cinquenta quilos de peso. Ficou assim mais perto do filho e da mulher, mas ainda havia de tardar em vê-los, que lhe faltava um ano e tal de comissão na 7ª esquadra de Luanda. Gastou-o ele entre idas ao médico e transporte de presos para a Damba, um presídio de pretos lá nos confins do Norte. E foi assim que Felisberto conheceu meio mundo, e viu coisas com que nunca sonhou, e se fartou de viajar à custa do império.

Quando voltou, foi parar à Quinta do Pisão, a um centro de apoio social da Misericórdia de Cascais. Ficou por lá uns anos, em serviços de enfermaria, e só não aguentou mais porque já nada era igual. Nem a vida com a mulher e o filho voltaram a ser a mesma coisa. (...)