terça-feira, 28 de junho de 2022

Contos... do vigário

(Cont.)

O Tribunal Europeu do Ambiente acabou a anunciar nos jornais a instalação em Trancoso dum projecto-piloto de cidade biológica. Benza-os Deus, ao tribunal e ao projecto, por virem tão a propósito. Pensa isto o viajante, ao lembrar-se do fedor das queijarias da quinta do Forcas, ali abaixo a dois passos. Com os seus lagos de efluentes a céu aberto, empestam a atmosfera à saída para Lamego, inquinam a ribeira de Rio de Moinhos, interditam a rega aos aldeãos, matam as faunas do Távora.

Ainda bem que chegaram a Trancoso estes cavaleiros andantes. A vila inteira é que não deu por eles, se antes não caprichou em manter as distâncias. É que há nestas liturgias diletantes um solipsismo patético, há um vazio que dói. Porém muito suspeita o viajante que a tão irreais oficiantes não molestou tão grande alheamento. Bem antes pelo contrário. E custa-lhe a acreditar que a câmara de Trancoso dispenda uma fortuna a financiar tudo isto.

Porque ainda não é tudo. Buscando nas entrelinhas, acaba por saber o viajante que o dito museu do tempo exporá uma colecção de duzentos relógios dos últimos quatro séculos. Os quais fazem parte do espólio dum inventor e industrial português de contornos indecisos, directo ascendente do já citado compositor brasileiro-luso, a alma destes encontros. E o arrojado museu vai ter o nome do filósofo que é também presidente honorário do Tribunal Europeu do Ambiente. Sabidos que já eram os efeitos, ficam assim conhecidas as causas, não vá alguém iludir-se com os acasos deste mundo. Tudo não passa afinal dum concerto de privadas conveniências.

Ora o viajante considera que um tão distinto cenáculo de construtores do futuro bem faria em reunir-se no hotel do Alto dos Frades para uns serões pacíficos de bridge. Mas não para estes rituais iniciáticos, alheios a uma realidade que absurdamente os ignora e financia. Bem verdade é o que se diz de qualquer poder sem freio. Ou corrompe, ou ensandece.

Isto fica a pensar o viajante, que ainda não imagina a dimensão verdadeira da sandice. Porque os dois encontros anuais da FACTO, para o ano hão-de ser quatro. Dado que anda o planeta mergulhado em ondas de simetria e assimetria, nada como devotar-se a câmara de Trancoso a discutir as magnas questões da Ruptura e Tradição, mecenando conclaves de sumidades internacionais em educação, sistemas cognitivos, design, teoria e história da arte, matemática, arquitectura, música, filosofia da ciência, neurologia e dança.

E não vá tanta coisa parecer pouco, há-de o Segundo Encontro Iternacional de Arte e Ciência esquartejar o tema das Sociedades de Alto e Baixo Poder. E por haver neste lugar remoto largas famas e melhores tradições visionárias e esotéricas, aqui terá lugar um Encontro Internacional de Arte e Alquimia, onde será chamada a capítulo a Alchimiarte, sociedade de ilustres que em Locarno se ocupam das relações entre uma coisa e outra, desde há séculos.

Hão-de fazer do Bandarra um cabalista, há-de justificar-se-lhe um museu. E finalmente, - pois que em toda a acção do Tribunal Europeu do Ambiente está francamente presente a ideia da liberdade, resgatada no seu significado clássico, de onde emana uma dinâmica Paideia, em que cada pessoa é responsável pelo desígnio dos seus próprios limites - hão-de voltar as Origens do Futuro, para pôr em pratos limpos a questão.

No mundo caprichoso que aí está, não saberá dizer o viajante se a decadência triste que vai por estas terras é uma fatalidade inescapável. Mas não duvida, depois do que tem visto, de que estas políticas locais só lhes abreviam a sentença. Que Portugal mete medo. (...)