terça-feira, 13 de abril de 2021

Ao menino e ao borracho...

Em Fevereiro de 1976 atravessei a ribeira dos Tourões e passei a salto a fronteira na Alta Rasa. Tinham-me prometido dez anos de exílio. Mas em Fevereiro de 78 já se tornara claro que, a haver um julgamento do 25 de Novembro, as regras normais seriam tidas em conta. Ora assim sendo havia que regressar. Porque a guerra era aqui e não lá fora.

E eu não tive qualquer dúvida. Mas também não tinha um passaporte válido, nem era lógico pedi-lo em Berlim. E lá se decidiu que o lugar adequado era o Maputo. Havia que ir até lá, depois de apanhar em Moscovo o voo da Aeroflot que dava a volta a meio mundo.

Nessa época eu tinha problemas com as amígdalas. E surgiam com frequência umas crises danadas, que me exigiam pesados antibióticos injectáveis. Dois ou três dias antes da partida... lá estava mais uma delas.

Preocupado fui ao hospital, onde uma Frau Doktor já madura me ouviu sem se condoer. Ficou-se por umas pastilhitas de chupar!

Era inverno. E eu vesti o sobretudo, apanhei o voo para Moscovo, passei umas horas numa sala de trânsito, e à noitinha parti no avião russo.

A infecçãozita fazia o seu caminho. E eu deixei de conseguir engolir, perante o espanto da hospedeira russa a quem recusei sempre as laranjas e outras vitualhas. A meio da noite aterrámos no Cairo, que se estendia lá em baixo num mar de luzes e noutro de mistérios. Milenares. Pouco depois descolámos, rumo à noite. E quando a manhã rompia achámo-nos em Aden, à entrada do Mar Vermelho.

Aí pudemos sair e estender as pernas. Lembro-me do sol macio, duns indígenas que andavam por ali, mas nenhum deles me pareceu ser o fantasma do Afonso de Albuquerque. Verdadeiro só o leme de direcção dum Mig russo, emboscado atrás das dunas. E ao longe, no horizonte, via-se um monte escuro, que bem ou mal me fez lembrar a Canção do Camões. Junto dum seco, fero e estéril monte...

A etapa seguinte seria Mogadiscio, onde as coisas não deviam andar muito católicas com os etíopes. Ninguém saiu, e a hospedeira russa encostou-se a um tabique, silenciosa, enquanto uma agente local entrou com ar de poucos amigos. Percorreu lentamente a coxia, viu o que havia que ver e pôs-se a andar.

Foi sem demora que nos fomos dali, rumo a Dar-es-Salam, e quando lá chegámos era Verão. Despi o sobretudo, desembarquei, e fiz uma bela passeata lá num parque, com hibiscos, trepadeiras e palmeiras. A fome nem a sentia, que tinha mais que fazer.

Restava um último salto até Maputo. Mas quando quis sair do aeroporto vi-me proibido de o fazer. E com imensa razão, já que não trazia qualquer visto de entrada. Sentei-me lá num banco, livrei-me do sobretudo e deixei-me desabar. As dores na garganta pareceram aumentar, e a cabeça entrou-me em roda livre, à espera duma saída. Até que ela chegou. Pedi ao hospedeiro o favor de telefonar para a embaixada alemã. E de lá chegou um funcionário que me safou da embrulhada.

O homem deixou-me num hotel surpreendente, que era redondo e moderno e se chamava girassol. Ora eu nunca estivera no Maputo, o que conhecera a palmo fora Angola e a Guiné. Não conhecia nada da cidade, nem das surpresas que ela me guardava. Logo que fiquei sozinho vim à rua e pus-me a andar à toa, alguma farmácia havia de encontrar. E encontrei-a. Atendeu-me um farmacêutico branco, de bata imaculada, a quem contei a história. A quem pedi que me vendesse sem receita o antibiótico de nome já esquecido.

Caiu-me o queixo de espanto quando o homem foi lá dentro e voltou com as pílulas na mão. Ao menino e ao borracho... e era mesmo verdade! Voltei para casa, contente como é de imaginar, e de caminho encontrei um vendedor a quem comprei um enorme abacaxi.

Levei para o quarto um prato e uma faca, que me dariam um jeitão. E deitei-me muito cedo, em vista das circunstâncias. 

Depois é que foram elas. Passei a noitada em claro, já se vê. As amígdalas estavam mais que maduras, e quando engoli as pílulas foi efeito fulminante. Passei toda a madrugada a escarrar num cinzeiro umas matérias castanhas, ensanguentadas e podres, que me faziam lembrar nem sei o quê. 

De manhã dei-me conta de estar novo. As dores desapareceram e finalmente a fome pôs-se a gritar. Fui-me ao abacaxi, comi-o todo.

Restava-me procurar o consulado, que encontrei na avenida Mao-tse-Tung, e pedir um  passaporte. Atendeu-me uma mulher que estava grávida, e me pediu uma certidão de nascimento de narrativa completa. Voltei lá quinze dias depois, com a certidão na mão. E nesse mesmo dia a mulher que estava grávida entregou-me o documento.

Confesso que fiquei emocionado, até lhe beijei a mão. Depois fui marcar o avião da TAP, que me traria a Lisboa. Informei o Conselho da Revolução da chegada à capital. E lá tinha à minha espera um senhor que era major, e me entregou em Caxias. Estive lá, se tanto, quinze dias. Fui presente a um juiz que me mandou aguardar o julgamento. Em casa.

Ora casa era coisa que eu não tinha. E o julgamento também nunca aconteceu. A história é que deixou de ser a mesma, com a ressalva de sempre. Ao menino e ao borracho...