terça-feira, 8 de outubro de 2019

Menina e Rubinho

Esta menina, com doze anos e três irmãos mais novos, desce pela mão da mãe o portaló dum vapor colonial, na Rocha do Conde de Óbidos. Nasceu e fez-se o que é numa província ultramarina, onde o Verão e a liberdade eram eternos. Hoje acaba de chegar a um país vago e tristonho, num dia de inverno frio, e há-de apanhar um comboio ronceiro, com bancos de madeira, que vai partir para o Norte.
Quando ela chegar ao Porto, estão a dar-se em casa de Rubinho os últimos retoques na árvore de Natal, cuja montagem dura há uma semana.
Daqui a um tempo, quando Rubinho for a férias na Granja, esta menina vai chegar no comboio todas as manhãs, e venderá saquinhas de pipocas pela praia fora, para ajudar a mãe a manter a família. Anos mais tarde, quando Rubinho andar entretido a descobrir a vida no peito acolchoado duma senhora inglesa, há-de afagar a menina as frieiras dos dedos, por causa da água gelada do tanque onde lava a roupa das camas dos hóspedes, para ajudar a mãe a manter a família.
Quando Rubinho for para a universidade, onde estão à espera dele os mestres que lhe hão-de explicar o pensamento dos filósofos, irá esta menina à escola técnica nocturna, porque as horas do dia são para ajudar a mãe a manter a família.
Um dia havemos nós de ler as memórias de Rubinho, e adentrar-nos com ele nos meandros do surrealismo. O que nos valia a pena era aprender a sustentar uma família. Mas o mundo é o que é, se não for antes o que fazem dele.