sábado, 29 de setembro de 2012

Voo de pássaro

A última trovoada arrastou encosta abaixo a aflição dos incêndios na serra de Guilheiro, que um paisano ateou à beira do caminho.
Para trás ficou este velho que já não existe, acamado e preso a tubos que o sujeitam. E a uma pilha que lhe cravaram no peito, e alimenta as fantasias duma Electra sonhadora, a quem o pai desenhava trancinhas no cabelo, numa infância que o tempo já levou.
Ficou esta viúva que vive duma horta e da pensão, e tem em casa um rapaz à procura de emprego.
Ficou este casal já trôpego, cujo filho partiu ontem para a Suíça porque as férias acabaram.
Ficou este polícia reformado, a quem uns falsários das finanças roubaram dois salários para acudir à dívida soberana. A quem ele gostava de acudir era aos dois netos, duma filha separada dum genro que é esquizofrénico e não se deixa tratar.
Ficou esta velhota com Alzheimer, à espera duma sopa que há-de vir das meninas da Misercórdia, caso elas ainda disponham da memória que a ela falta.  
Ficou esta casa de turismo que os turistas desertaram por causa da interioridade, por causa das distâncias, por causa das portagens, por causa da gasolina.
Ficaram os carvões acumulados no leito da ribeira, que só as enxurradas do inverno hão-de lavar.