segunda-feira, 25 de agosto de 2025

As Aves Levantam contra o vento 7-9

Ali ficámos encerrados três dias, no meio daquele deserto, até que a neve deu sinais de amainar e o carro preto apareceu outra vez. O passador abriu o portão a chamar-nos aos berros, chegámos ao desvio e lá estava ele à espera, outra vez os mais pequenos fechados no cofre da traseira e oa restantes nove lá dentro, só parámos ao princípio da noite já depois de Tolosa, o carro preto nunca mais o tornámos a ver.

Com muita pena nossa, que tínhamos à espera a parte mais custosa da jornada. Toda a noite a andar, Pirinéus afora em caminhos de cabras, com a neve a tornar tudo mais bicudo. Cada um se guiava pelo vulto da frente naquela escuridão, ele havia ladeiras que só podiam ser iguais às que levam ao inferno e ninguém podia falar. A gente sabia que já íamos parar em França, e isso puxava-nos pelo ânimo, se nãoera antes o desespero a empurrar-nos. Mas o gelo atraiçoava o pessoal, as quedas eram frequentes, a dada altura o meu irmão torceu um pé e o passador logo se pôs a ameaçá-lo, quem o salvou ali e o amparou fui eu, mais o outro colega da nossa zona.

Quando entrámos no moinho à beira dum ribeiro tinha passado a fronteira.Já estávamos em França, Deus louvado, e ali ficámos a descansar parte do dia. Atarvessámos depois umas matas compridas, até darmos connosco num lugar onde já havia um rebanho de pessoal, amalhoado à beira duma estrada. Ali nos deram pela primeira vez garrafas de bebida, que disputámos à força, de comida é que não recebemos mais uma migalha até ao destino final. A dada altura pararam ali na estrada dois camiões de caixa fechada, num deles couberam oitenta e cinco homens, contei-os eu, que entrei na derradeira. Lá dentro havia mais limonadas, três baldes para as precisões, e  a porta de trás, tapada por dentro com caixas de cartão. só voltou a abrir-se quando parámos já perto de Champigny.

A viagem durou catorze dias, passadores que nos vieram à mão contei eu quarenta e um, e do que aconteceu depois da nossa chegada, enquanto a vida demorou a tomar algum rumo, não lhe vou aqui falar, ele há coisas que nem se podem contar, ficam melhor guardadas cá dentro.

Depois chegou depressa o tempode ir à tropa, eu estava na idade, e a guerra de Angola começou passado um ano. Nunca me apresentei, deram-me como fugido, se fosse a Portugal apanhavam-me logo. Só lá voltei dez anos mais tarde, casado já com a minha senhora, que é francesa, com passaporte de cá. Para poder voltar à minha terra, por ter fugido à tropa, deixei de ser português.

A tarde vai avançada e Gaspar tem que partir, mas assaltam-no emoções contraditórias e preferia ficar. Um silêncio atormentado toma-lhe conta do peito. Fica a olhar os circunstantes que ao fundo batem as cartas, ouve-lhes as conversas ruidosas, pára nos semblantes melancólicos que ruminam cervejas pensativas. Não encontra as palavras que procura e aqui teriam lugar. E sem elas se despede do seu anfitrião, que o envolve num abraço rude.

Antes de recolher ao hotel, para a sua últims noite na cidade-luz, passa Gaspar na praceta de Saint-Germain-des-Prés. Já não tem nas mãos nada para salvar. Mas queria ainda aprender como se salva o mundo, através de ocupções e da autugestão. Para algum acaso imprevisto.

Nessa noite o mestre faltou ao Deux Magots. E na manhã seguinte Gaspar tinha avião.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

As Aves 7-8

De forma que nos pusemos a pensar, lá em casa já havia a experiência do meu pai, embora antiga, e à palavra dp padre juntámo-nos três, dali daquela zona. Decidimos do dia para a noite, que é a melhor forma de tomar decisões impossíveis, como é sabido. À  procura dum passador foi o meu irmão mais velho ao Sabugal, que sempre foi boa terra para contrabandos. Lembro-me como se fosse hoje, a gente à espera e os dias a fugir, o facto é que a guarda já andava de focinho no ar, estranhou-lhe a presença por ali e meteu-o na cadeia durante uns dias, era assim que as coisas se faziam. Aguentou-se ele com as mentiras que pôde e lá omandaram embora, ao fim duma semana estava tudo pronto, tratámos de pedir emprestado o dinheiro da viagem e fomos ter a Quadrazais.

Ao todo éramos nove, arrancámos atrás do passador ao princípio da noite, meia hora adiante topámos com a guarda. Cada um debandou conforme pôde por aqueles cabeços da Malcata, parecíamos perdigotos assustados, eu deixei para trás o saco onde guardava um pão de quartos e a casaca, no dia seguinte a arrancada foi de vez.

Andámos então dezanove horas seguidas até uma terra espanhola chamada Valverde, sempre a rasgar a direito, e acabámos a descansar num ermo vago, agachados no mato. O passador voltou ao anoitecer  e lá cruzámos a estrada um a um, sempre atrás dele, avançámos ao longo dum lameiro, havia frio, ouvia-se restolhada de cavalos. A dado ponto alcançámos um barracão no monte, donde espantámos uns porcos que lá havia, ali nos deram o primeiro pão com chocolate espanhol, ali passámos a primeira noite em cama quente.

Partimos de madrugada, quando possível por caminhos abertos do campo, bebíamos água se havia algum regato, e se aparecia um chão de areia avançávamos às arrecuas, a desenhar os passos ao contrário, não há como seguir experiências já feitas e exemplos comprovados. Enfim chegámos, numa serra, a uns fortins de cimento, por certo coisas do tempo da guerra espanhola, ali no ermo. Foi onde descansámos uma tarde, numas camas de fieitos que lá dentro havia, ficámos a saber que não éramos os primeiros a passar por ali. O grupo era de nove, e nove se mantinham, embora o meu irmão quisesse desistir logo na primeira e mais longa tirada.

Bem fez ele em se firmar nas pernas e aguentar, que agora vamos deixar de andar a pé, daqui até Madrid viajamos de carro. Somos nove os caminheiros, a esse número temos que juntar o passador, nada feito sem ele, mais o condutor que não podemos dispensar. O conjunto há-de parecer exagerado para tão singela carruagem, mas só a quem nunca se viu nestas alhadas, não é o nosso caso, no ponto a que chegámos já nada nos causa admiração. Este carro preto é único exemplar, com ele nos temos que haver, importa aqui é saber quem são os dois de menos alentado corpo, melhor se encaixarão a par, lá atrás, no cofre das bagagens.

Quem tinha dúvidas bem fará em perdê-las, pois que a Madrid chegámos, e em Madrid ficámos dois dias fechados numa garagem, a pão e chocolate. Ainda hoje estou para saber por que razão ninguém pensava em trazer-nos bebidas, se não era para evitar necessidades de aliviar o corpo, não falo já do vinho a que estas bocas estão habituadas, falo duma limonada qualquer, dum reles pirolito, da água lisa duma bica.

De Madrid viemos, de rota batida e cu tremido, com o fito em Tolosa, o carro preto a dar mostras duma afoiteza que não se adivinhava. Porém, a dado ponto, a neve começou a cair e foi mais forte. Lá encostámos à berma antes de Miranda, num desvio ali a meio do descampado, saltámos cá para fora e logo nos puseram a correr, até chegarmos a um grande barracão que lá havia. (Cont.)

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

AsAves 7-7

A princípio falaram em francês, a tropeçar em cortesias e embaraços, mas quando se descobriram patrícios a conversa ganhou outro à-vontade. Nem de propósito, amanhã é domingo, apareça você em Saint-Denis, na rue des Peupliers, lá nos encontramos todos.

João Carrolo é dirigente da Associação Recreativa Cultural e Desportiva dos portugueses de Saint-Denis. Têm aqui este lugar de encontro, para estarem juntos, para se sentirem gente. Preparam festas, almoços, arraiais, já cá vieram artistas, já tiveram visitas de políticos. Aos domingos passam a tarde aqui, quem quiser vir, jogam às cartas, matam saudades. E Gaspar já se deu a conhecer, já fez as suas perguntas, já quis acamaradar. Já contou ao João Carrolo a sua circunstância, já explicou ao que vem. E enquanto tira de misérias a barriga, fica-se a ouvir do companheiro os motivos e as passadas que o troux em eram até França.

Eu vim do Zabro, lá para as serras da Lapa, nos começos da década de sessenta. Há-de estar a fazer anos a princípios de Março. Pouco se falava ainda em emigrar, nada daquela febre de alguns anos mais tarde, quando os homens debandaram em massa, e as aldeias, uma atrás da outra, ficaram entregues aos velhos, às crianças e às mulheres. Fui dos primeiros e lembro-me muito bem, o padre da ftreguesia era um homem como poucos. Atento às aflições do povo, foi dele o primeiro passa-palavra, havia muito trabalho a fazer em França.

Ora por França já o meu pai tinha andado em mil novecentos e trinta e tal, primeiro numa fábrica de anilinas em Lião, e mais tarde na ilha da Corsa, de machado e serrote nas unhas, a desbastar matagais. A  prova é que sempre andaram lá por casa, se ainda hoje andarão, uns postais do correio já mordidos do tempo, havia umas donzelas que se punham a sonhar e mandavam-nos ao cher Benjamin, já ele tinha regressado à nossa terra, já tinha casado com a minha mãe. Lá saberiam elas o que ficaram a perder, à vista de recado tão teimoso.

Mas vida de pobre não sai do mesmo sítio, por mais voltas que o cão dê. Chegava a gente ao cabo do ano, que era a feira de Agosto, vendia, quem os tinha, gados miúdos e graúdos, comprava-se um leitão para criar, uma vitela ao meio ganho se havia padrinhos de posses, via a gente a animação dos cavalinhos a girarem à roda e deixava de pensar no resto, as girafas atrás dos leões, e os leões a perseguir as zebras riscadas sem nunca as alcançarem, era tal e qual o mesmo jogo sem fim da nossa vida. Trazia a gente para casa uma camisa nova, umas botas de pneu, uma caixita redonda de banha da cobra com que tratava a pele ardida do muito sol, no fim de pagar a renda das courelas fechava-se o ano sempre no mesmo ponto em que tinha começado, uma miséria aflita, olha hoje um homem para trás e não acredita que um mundo assim já existiu.

O Salazar punha o povo a cantar a casinha portuguesa, mas o pão e o vinho sobre a mesa só existiam na letra da cantiga, não havia casa nenhuma, nem estaria para haver. O país existia para uso duns quantos figurões inchados de prosápia, o resto eram burros de carga, não havia entre a gente e os bichos fundamental diferença, de vida e passadio, quem quisesse fugir à miséria só tinha um rumo a tomar, era procurar uma terra melhor. (Cont.)


quarta-feira, 6 de agosto de 2025

As Aves 7-6

Gaspar sai finalmente para os jardins. E tanta realidade traz nos olhos, que não lhe sobra espaço para imaginações. Mesmo amputados pela Revolução, parecem estes domínios um reino inteiro, a estender-se para lá do horizonte. Espelhos de água com figuras alegóricas, terraços e escadarias e bosques e alamedas, e jardins da Orangerie onde há plantas de Setúbal, e jogos de água com tritões de bronze, e cascatas e estátuas e fontanas, esta aqui é a de Latona, de quem nasceu Apolo, o do carro do sol. Sentindo-se ultrajada pelas línguas do povo, pediu vingança a Júpiter, que as transformou em rãs. E aqui ficaram elas para toda a eternidade, a coaxar ao vento as suas loas. Lá ao fundo começa o Grand Canal, onde já navegaram barcarolas e se travaram batalhas navais.

É impossível ver tudo. Mas Gaspar não partirá sem ir ao Trianon, onde já houve uma aldeia que um decreto real mandou desaparecer. Ficaram nas colinas dois pequenos palácios, como se mais palácios cá faltassem, e mais jardins à francesa, e um palácio belvedere, e paisagens românticas à moda de Inglaterra. Mas já galopa Gaspar aos casais da rainha, que uns arquitectos andaram a construir, para ela se espairecer dos grandes tédios da corte.

Os casinhotos são de inspiração normanda e têm tectos de colmo, à beira dum riacho. Resta o moinho, o pombal, a quinta e a leitaria, e a choupana da rainha com varandins de madeira. Tão pouco tempo a gozou, a desditosa, que Gaspar se surpreende a lamentar as razões que a história às vezes esconde. Certo rei varreu uma aldeia, mandou fazer um plácio. Deixa o palácio a rainha, volta a construir a aldeia. Não gosta do jogo, o povo, que já tem a vida dura, e corta a cabeça aos dois.E se não houver aqui quem lance a pedra primeira, a última não a lançaremos nós.

Foi tão grande a romaria como o dia, depois duma tal jornada Gaspar não se levantou. De cansaço, se não foi de exaustão, e de emoções, que não esperava tantas. Só ao fim da tarde veio à rua, em busca de um conforto para o estômago agastado. Sobram-lhe dias na escala, já lhe está faltando o ânimo, e mais ainda o dinheiro. Lança mão do telefone que o companheiro deixou. (Cont.)

quarta-feira, 30 de julho de 2025

As Aves 7-5

Cá fora tem à espera um temporal desfeito, oxalá não dure muito. Mas passada assim a tarde em tais companhias, dormiu Gaspar entre sonhos de bem.aventurança e levantou-se cedo. É dia de ir ao palácio do Rei-Sol. O comboio é quente e pontual e cómodo, e Gaspar vai lendo os roteiros do turismo. Ilude alguma apreensão enquanto vê passar o comprido arrabalde, que uns patrícios seus andaram a construir e o céu pesado faz entristecer. Oxalá não venha o tempo estragar o passeio, a oportunidade não se repetirá. E era hoje o dia de partir, que vinha concertado. As finanças estão há muito em contagem minguante, queira Deus não venhamos a amargar este mimo.

Gaspar percorre a pé a avenida de acesso aos domínios do Rei-Sol. Eram há trezentos anos a sede do absolutismo, ficaram a ser-lhe símbolo depois da Revolução. Gaspar preparou-se para a visita, já sabe que, Europa fora, imitações e réplicas lhe atestaram a fama, se mesmo a Portugal chegaram ecos difusos. Mas não sabe ainda que ao percorrer a avenida está pisando o eixo das simetrias do mundo, o tal que passa pelo leito do rei, pelo centro da sua coroa, e divide alamedas e horizontes, e paisagens de lagos e montanhas, e separa em terra os rios, e estrelas no firmamento.

Já deixou para trás instalações secundárias, alojamentos e escolas de valetes, picadeiros e cavalariças, cocheiras e estrebarias, a do escudeiro-mor, a do primeiro-escudeiro. São tão vastas e pomposas que só nelas gastaria o tempo todo, bem se dizia das béstias do rei de França viverem em melhores cómodos que os príncipes da Europa. Gaspar atravessou a praça de armas e cruzou a paliçada, entrou no pátio primeiro, depois no pátio real, estreitando intimidades até ao pátio de mármore, que o não deixaram pisar. No alto da fachada desta prisão de reis ficou paralisado um relógio imponente, desde o exacto minuto em que o senhor do tempo claudicou. E em baixo, a meia altura, o varandim colonado, onde veio apresentar-se o par decapitado, quando o furor do povo o reclamou.

A visita aos interiores tem início na capela, requinte de ouros, e mármores, e rigores neo-clássicos. Depois uma enfiada de salões, palcos públicos do rei, o de Hércules, o da Abundância, os de Vénus e Diana, o de Marte, o de Mercúrio, o de Apolo que teve um trono de prata, e vendo agora este salão da Guerra, é certo que mais à frente acharemos o da Paz. Entre um e outro a Galerie des Glaces, cortada em duas pelo eixo das simetrias, e onde se enfatuavam cortesãos à espera que o rei passasse, às devoções na capela. O fulgor destes cristais, dos ouros, dos alabastros, os tesouros da pintura, das talhas, da estatuária, os lustres e os candelabros, os leques de pavão de Sèvres, os trompe-l'oeil  mentirosos, os festejos de rigor e os bailes de mascarados que a imaginação nos traz, tudo aqui nos ultrapassa a mais fértil fantasia.

Já chegámos aos aposentos da rainha, à alcova das parições reais, ao salão do Grand Couvert, à câmara dos nobres e à dos guardas, e já voltámos às cenas murais, e às madeiras embutidas, e aos tapetes e às sedas e aos brocados.

Vêm agora os privados do rei, um do leito e das insónias, um do conselho de ministros, um das perucas, um dos trajamentos, um das ceias públicas e outro da biblioteca, um do relógio astronómico e das curiosidades, este final é o dos jogos.

Já não cabemos em nós de tanta fascinação e ainda nos falta ver a ópera real, obra toda em madeiras marchetadas, que lhe emprestam a acústica perfeita. Ainda neste firmamento Apolo reina, porque é ele o deus das Artes e da Luz, e muito antes de o rei o ser um dia, foi Apolo o sol primeiro. Um delicado mecanismo levanta a plateia ao rés do palco, e assim se fez aqui muitas vezes o baile, quando melhor lugar se não achou. (Cont.)

terça-feira, 29 de julho de 2025

As Aves 7-4

A terceira tarde não foi uma aventura, era um encontro, sem data, que estava combinado. Um encontro com o mistério, cara a cara. Gaspar foi encontrar-se com a Gioconda, estava ela a receber visitas ao fundo duma sala, a perder-se num sfumato, na vastidão da parede. Ficou-se a observá-la cá de longe, a aventurar-se aos poucos, à medida que fluía a multidão visitante. E quanto mais perto se achava, cercado de outros convivas, mais sozinho e exclusivo lhe parecia aquele encontro. Ficou ali meia hora, de olhar preso.

Gaspar está emocionado, mas não sabe que emoção é esta, nem conhece as palavras de a dizer. Vem-lhe à ideia um verso conhecido, de um perito em tais mistérios, um mover de olhos branco e piedoso. São estas mesmas as cores, e o murmurar dos sons, e este pudor quase físico, e a luz maior a fulgurar no peito, plácida e macia. Vinha ele à procura do mistério e encontrou-se com um abismo. É certo o mover dos olhos, quem fiará, porém, das qualidades.

Mas hoje tem Gaspar o seu dia de fortuna maior, se fortuna é ter à espera a própria Vénus. Encontrou-a Garpar ao fundo de uma nave, exposta num pedestal, fulgurante como aparição, numa auréola de luz. Deslizou-lhe o véu nas ancas, já esquecido. E a face, o peito, o ventre, as coxas, um joelho, abre-se-lhe o corpo inteiro a todas as direcções, numa espiral donde não há evasão. E os braços, que estão em falta, deixam lugar à imaginação. É a carnalidade intemporal, nesta brancura de mármore. Garpar não tem aqui nenhum poeta em seu soorro, nem lhe valeria a pena. Ao pé do fulgor pagão dos velhos gregos, tudo é trivialidade. (Cont.)

segunda-feira, 21 de julho de 2025

As Aves 7-3

Por agora tem Gaspar que atravessar metade da cidade, vencer o dédalo de túneis e passagens, até chegar à rue de la Paix e aos balcões da companhia. Parece desolada a hospedeira, por já ter a lotação completa. Mas pior ficou Gaspar, que viu crescer em dois dias a duração da escala. Marca viagem no avião seguinte e regressa ao hotel a fazer contas.

Três coisas tem Gaspar que administrar, qual das três a mais custosa, o tempo que é por demais, o dinheiro feito pouco, e a sua curiosidade que é bastante. Não vai ser ele o primeiro a cortar em satisfações da boca. E as manhãs hão-de ser as próprias da estação, agrestes e desabridas, como se espera nestas latitudes. Ora um corpo adormecido tem já meio sustento garantido. Seguro da conclusão, passará Gaspar a prolongá-las no duvidoso aconchego dos lençóis.

É às tardes que arrisca uma aventura. A primeira começou no Jeu de Paume, onde foi encontrar o Petit Fifre, um companheiro que lhe ficou da infância, perdido numa página dum livro de francês. Gaspar vai à procura de si próprio, mais que do pequeno tocador de pífaro, e a figura é menos impressiva do que lhe guarda a lembrança. Falta-lhe vigor nas cores e a expressão é singela em demasia, isto é o que sente Gaspar, um tanto decepcionado, em questões de arte não vai além das impressões primeiras. Se por tão fracas razões a obra foi recusada numa exposição do tempo, é o que não explica este catálogo. Mas Garpar já regressou à meninice. E o que ficou a perder nesta figura, por ter esquecido a força da antiga imaginação, foi ganhá-la nos Déchargeurs de charbon, já então os mesmos que hoje são, subindo e descendo as pranchas, de balaios à cabeça, já difusos de neblina e de poeira, a alimentar as fornalhas do mundo.

Na tarde segunda foi à praça da Concórdia, onde a lâmina fatal degolou a vassalagem dos poderes absolutos. Em seu vagar subiu os Champs Elisées até à Place de l,Étoile, e chegou ao arco triunfal onde essa história toda veio desembocar. No caminho entrou numa livraria e não perdeu o seu tempo. Encontrou nela um poema dum tal Prévert, que lhe veio a múltiplos preceitos. O caso é que um soldado, certo dia, trancou o bivaque na gaiola e saiu do quartel de canário na cabeça. O gesto há-de parecer uma heresia, e o mais certo é que o seja. Porém, conforme alegou o pássaro, qualquer um pode andar enganado, e arrepiar um dia o seu caminho. Tivesse o degolado rei, é um exemplo, espíritos mais atentos às falas de certas aves, e outro galo cantaria. Não foi esse o celerado caso, diz a história. Foi-o, porém, felizmente, noutros mais pessoais e recentes, põe-se Gaspar a pensar. Muita coisa diz a arte, sem afirmar coisíssima nenhuma. E Garpar, que o não sabia, tomou aqui a primeira lição.

Já deu ao Arco do Triunfo as voltas do romeiro, que são três, e contou as batalhas todas que sublinha. E viu Almeida, onde o paiol explodiu, e a sangueira misturada na corrente da ponte velha do Côa, e o Rio Seco, e Fuentes e Alba de Tormes, e muitas outras de que nunca ouviu falar. E lembrou-se do Buçaco, e das Linhas de Torres Vedras, e doutras que aqui não vão por não serem vitoriosas. Veio-lhe à ideia a fuga para o Brasil, o governo dos ingleses, o ódio ao jacobino. E concluiu, bem ou mal, que a história de Portugal mais uma vez se enganou.

Viu proclamada a terceira república, e regressada a Alsácia ao pátrio berço, e lembrados os partisans mortos pela honra da França, mal feito fora esquecê-los quando tantos claudicaram, e os soldados da Coreia, e os caídos na Indochina, e na guerrilha da Argélia, da Tunísia e de Marrocos, e de tanto batalhar ficou esta chama acesa a um soldado ignorado, quem sabe se terá vindo duma tribo de além-mar. Foi entre todos quem mais sacrificou, se nem um nome lhe resta. (Cont.)