Incapaz de ver os erros do passado, só restava a Portugal passar a vida a repeti-los. Um dia tomou conta do governo um professor de Finanças, bisonho camponês que a igreja modelou num espírito de frade, austero, ardiloso, agudíssimo, implacável. Conhecia como ninguém a alma dos portugueses, era ele a sua mais perfeita imagem. Desdenhava da fatuidade dos salões e desprezava as multidões primárias, era um deserdado que só acreditava em elites. Não apreciava indústrias, por tanto se temer do ruído dos operários a sair do bojo das fábricas, proibiu a coca-cola para que não houvesse exemplos de sociedades eficazes, sonhava-se ministro dum rei absoluto deslocado no tempo, um Pombal despótico e tirano a quem sobrava a manha e faltava o esclarecimento. Governava o país do fundo duma vela, e, milagre supremo, pôs em ordem as finanças pelo cálculo mais elementar. Domesticado o povo pela inanição e pelo silêncio, mourejavam três quartos dum país infantilizado há séculos, para que o restante quarto vivesse à tripa forra. Era esta a lei universal do mundo.
Mas a história, que nunca tem pressa, acaba sempre por chegar, e o fim chegaria também aos impérios coloniais europeus. Os mapas do mundo começaram a mudar, ganhavam um país novo em cada dia. A França majestosa, do alto da sua soberbia, fugira da Indochina com as calças na mão, e retirara-se da Argélia antes que as mesmas lhe caíssem definitivamente pernas abaixo. Empurrados pelo vento, de gurupés apontado a casa, viam-se passar, mar acima, rebanhos de caravelas roídas pelos búzios, a adornar de fantasmas de almirantes de barbas e conquistadores zarolhos, de destroços de piratas e negreiros, de missionários comidos pelos cafres, de donatários cúpidos, de exploradores de sertões, e dos vagamundos de que falavam os livros antigos. Alheado do mundo na penumbra da cela, o professor de Finanças pôs-se a desfraldar os antigos cenários pintados da epopeia, a deformar a história para melhor dar vida aos mitos. Do dia para a noite as colónias deixaram de o ser, e a um toque de vara de condão sumiram-se no ar os portugueses de primeira, de segunda, de terceira, qualquer rústico de Fafe era tão português como um nómada qualquer do deserto de Moçâmedes, todos filhos duma nação que não cabia na Europa inteira, vastíssima de Lisboa à Sibéria, e o ponto mais alto e subido da pátria era o pico do Ramelau, na parte leste da ilha de Timor. Um dia, três mil soldados de chinelas, sem munições nem armas, vieram a achar-se em frente dum exército de quarenta e cinco mil indianos, que reclamavam Goa. Invocado ali o infante D. Henrique, logo ordenou o professor de Finanças que nem um português sobrasse vivo, para que o destino pátrio se cumprisse. Já sorte menos funesta colheu os dois amanuenses, que no forte de São João Baptista de Ajudá mantinham vivo o esplendor imperial, e velavam a memória do tráfico negreiro. Foi-lhes apenas ordenado que lançassem fogo à praça, antes de a abandonarem aos negros e baterem em retirada.
Um império de marionetas de feira, que durante séculos arruinara a alma da nação e punha a rir o mundo inteiro, tinha de acabar como sempre vivera. E quando a guerra começou nas fazendas do Congo e nos cafezais dos Dembos, abrindo o pano ao último acto da tragicomédia, ninguém ficou surpreendido quando o lapuz das Finanças atulhou de soldados os porões do Niassa e mandou levantar ferro para Angola, rapidamente e em força. A indolência e a cupidez, que tinham alimentado a vesânia do império, transformaram-se em paranóia. Diante do turbilhão que se podia imaginar, qualquer simples espírito cristão saberia que era urgente salvaguardar os povos, as vidas,os haveres, em vez de os lançar a todos num braseiro. Mas os políticos dementes de Lisboa tomavam-se por actores dum destino providencial, estavam ali para defender da barbárie a civilização ocidental. Vinha aí, sem demora, a terceira guerra mundial. E o país devia, assim,subir ao gólgota, para assegurar, no fururo, a salvaguarda do império e a redenção do mundo. Um dia, o mesmo mundo ia dar-nos razão.
Mas não chegou a dar. Nem nós a tínhamos, nem a prometida guerra apareceu a trazê-la numa bandeja. Em lugar disso, o que fez o mundo foi ostracizar-nos, foi mandar-nos rezar uma missa por alma, foi esquecer que existíamos. E realmente, se alguma vez o foi, o país de Portugal deixara de existir. O melhor da juventude era sacrificado no açougue dos sertões de África, ou desertava aos milhares, preferindo lavar à mão os pratos todos da Europa, a deixar-se trucidar nos escombros da história. Abandonado a si mesmo, a ver se escapava à fome, o povo há muito que fugira a salto, das aldeias abandonadas a velhos tristes, a crianças ao deus-dará.
De forma que, durante treze anos, a tropa fez das tripas coração, para dar aos políticos dementes de Lisboa o tempo de escreverem o testamento do império. Mas eles carregavam a maldição da Índia na alma, e passavam a vida a jurar que não haviam de ser a geração da traição. Preferiam a hecatombe dum exército derrotado a afogar-se no mar, ou a galopar sem norte pelo sertão, ao compasso dos tantãs da sanzala. Foi por isso que a minha revolução aconteceu. (Cont.)