quarta-feira, 26 de junho de 2019

O último maçarico-esquimó 14


As costas da Nova Escócia e da Nova Inglaterra estavam já a várias horas de distância, atrás do nevão impenetrável. À sua frente, quem sabe se apenas a alguns minutos, estava a atmosfera mais quente e mais tranquila, para lá da tempestade. Porém, mesmo depois de ultrapassarem a frente fria, tinham que continuar a voar na direcção do mar sem fim, para evitar as nuvens geladas que agora os empurravam impiedosamente, cada vez mais perto da crista das ondas. O maçarico sabia disso, não por reflexão mas por comportamento instintivo. Por uma vaga inspiração que lhe dizia também estar algures uma fêmea à sua espera, quando os musgos e os líquenes da tundra ficassem verdes de novo, e o tempo do acasalamento voltasse.
            O maçarico possuía músculos peitorais e tendões bem mais fortes do que as pequenas tarambolas. Mas agora doíam. Mesmo a ele, custava-lhe um extraordinário dispêndio de energia vencer a dificuldade trazida pela neve incrustada nas asas. Uma vez que perdiam altitude, atingiram de novo as camadas de ar inferiores, instáveis e agitadas. A formação rompeu-se, mas as aves continuaram juntas, fazendo-se ouvir por altos gritos. Cada ave estava sozinha num mundo de vento e neve, e só este gorjeio fremente as ligava umas às outras.
            Durante longo tempo voaram no ar frio, sem poderem observar a rota. O maçarico procurou manter a altitude, até os músculos do peito e as fibras todas do corpo lhe vibrarem de dor e de cansaço. Ao gorjeio das tarambolas juntou-se em breve um assobio agudo, cada vez mais forte. Era o ruído da neve estalando na água.
            Então o maçarico conseguiu ver através da cortina branca. Vagas de crista prateada apareciam à sua frente, cresciam espumando e desapareciam lá atrás. O nevão abrandou e as tarambolas podiam ver-se de novo. Voavam ao acaso, atrás do maçarico, e as mais fracas iam ficando para trás. Estavam mais próximas da água, pois tinham que sacrificar ainda mais altitude para poderem acompanhar as mais fortes. A neve colava-se-lhes às pontas das asas. E, mal se derretia com o calor do corpo, logo outra se acumulava.
            O maçarico voou alguns segundos na horizontal, e logo o andamento baixou. Teve que descer, para ganhar velocidade e outra vez altitude. Podia agora ver claramente o mar, onde as cristas brancas das ondas se erguiam da água escura. Às vezes uma vaga erguia-se tão alto, que só por um ou dois metros não atingia as aves em luta.
            Uma onda gigante elevou-se diante deles. O maçarico venceu com esforço a inércia das asas e sobrevoou-a a custo. Mergulhou em seguida no leito da onda, esforçando-se por continuar em frente. A próxima crista era mais baixa, e ele ultrapassou-a com segurança. Mas atrás dele a grande vaga atacava, raivosa, as tarambolas. Três aves mais fracas lutaram em vão por ganhar altitude, e ficaram sem forças, penduradas no ar. Nenhum grito se ouviu. A vaga cresceu e engoliu as aves. Passou, e elas tinham desaparecido. A natureza, tão selectiva em todas as coisas, é ainda mais exigente quando se trata da morte. Os mais fracos não pedem compaixão, nem lhes é concedida misericórdia.
            O bando esforçou-se por continuar, voou rente à água, lutou encarniçadamente para ultrapassar as cristas das ondas. Gozou, para respirar, as pequenas pausas de segundos, no ar sossegado dos seus leitos. Então, de um longo talvegue cresceu uma muralha fervilhante, mais alta que todas as vagas anteriores. A espuma fustigou as asas do maçarico. Durante segundos teve que lutar com os violentos turbilhões da corrente para se manter no ar. Mas a espuma varreu uma parte da neve que se lhe colara às asas. Por um minuto estas puderam mover-se no ar com toda a força. Depois a neve sobrecarregou-as de novo. Apenas a certeza de que a frente fria seria em breve ultrapassada fez o maçarico aguentar.
            Muito lentamente o ar foi-se tornando mais quente, tão lentamente que mal se podia sentir a mudança. Então a neve transformou-se repentinamente em chuva. Estava ali a parede branca de neve diante deles, e após uma nova crista estalaram-lhes gotas de chuva nas penas. Alguns segundos depois já tinha derretido a neve das asas. O maçarico conduziu o resto do bando subindo em frente. A dor e o cansaço depressa desapareceram, as aves podiam voar outra vez normalmente e os músculos repousaram. A neve desapareceu na escuridão. Uns minutos depois romperam a frente fria e atingiram uma zona húmida e tranquila.

                                              
O CORREDOR DA MORTE

            ... E por vezes, nas tempestades do Nordeste, bandos de maçaricos espantosamente numerosos eram empurrados pelo vento para as costas da Nova Inglaterra, onde pousavam completamente extenuados. A sua caça era então um exercício fácil, podendo simplesmente abater-se à cacetada. A Nantucket chegavam em bandos tão grandes que as reservas de munições da ilha não eram suficientes. E a carnificina parava, até chegarem munições da terra firme.
            Os atiradores chamavam-lhes “aves-massa”, pois no Outono os maçaricos eram tão gordos que o peito lhes rebentava quando caíam no chão, e a camada de gordura era macia como massa de pão. Não admira que fossem tão perseguidos, pois deviam ser um bom petisco à mesa.
            Eram mansos e confiantes, e voavam em bandos tão densos que podiam facilmente ser abatidos em grande número... Dois caçadores que forneciam o mercado em Massachussetts ganharam 300 dólares com os seus tiros a um único bando... Crianças vendiam as aves a 6 cêntimos por cabeça... Em 1882, em Nantucket, dois caçadores abateram numa manhã 87 maçaricos... Em 1894, no mercado de Boston, já só apareceu um único à venda.
(Cont.)